"Era raríssima a mulher da aldeia que conseguia formar-se, era assim que a sociedade funcionava"

Maria da Luz Lima e João Diogo Machado nasceram no Alentejo durante o período da Guerra do Ultramar. Com as diferenças que ser homem e ser mulher implicavam naquela altura, assim como as de crescer no campo e na cidade, partilham a vivência dos anos anteriores à Revolução dos Cravos e aqueles que lhe sucederam.
Entrevista | Catarina Gabriel

Olhares Académicos (OA): Em que ano nasceu e quantos anos tinha no 25 de Abril?

Maria da Luz Lima (L): Então, eu nasci em Fevereiro de 1960... já tinha feito os 14, quando foi o 25 de Abril.

João Diogo Machado (J): Tinha 19. Porque eu nasci em 1954, mas só fazia anos no fim do Verão... já tinha sido a Revolução quando eu fiz os 20. 

Cidadãos com cartaz a apelar à liberdade. 25 de Abril - Bing images

OA: Como é que descreve a sua infância

L: A minha infância deve ter sido muito parecida à das raparigas todas da minha idade, naquela altura. Principalmente das que faziam a vida mais no interior... no campo. Nós eramos oito filhos e eu era a única rapariga. A vida lá no campo não era muito fácil. Vá lá que eu consegui completar a quarta classe, porque nem todas as raparigas tinham essa possibilidade, porque eram precisas em casa. Depois, aos 10 anos, lá fui para casa... limpava, fazia a limpeza, cozinhava porque nós éramos dez e a minha mãe sozinha com o bebé não conseguia fazer tudo. Enquanto isso, o meu pai e os cinco mais velhos iam para o campo trabalhar. E não eram muito mais velhos que eu... o Joaquim tinha só mais 11 meses que eu..., mas era assim a vida, trabalhava-se logo desde muito novo. Por exemplo, o Álvaro, que devia ter na altura uns 6 anos, também já trabalhava. Todos os dias de madrugada ia para o campo com o rebanho de um vizinho nosso que tinha animais e por isso tinha mais dinheiro. Levava as ovelhas e uns pedaços de pão dentro de um lenço... coitadinho só voltava já à tardinha, muito cansado e com dois rebuçados na mão que o vizinho lhe dava sempre.


J: Ah eu gostei da minha infância... não posso dizer que foi uma infância difícil porque não foi. Fui feliz. Principalmente até aos meus 16 anos. Ia à escola... brincava... também trabalhava às vezes lá com o meu pai, outras vezes com a minha mãe, mas não era rotineiro... era só de vez em quando. Mas eu tinha a noção da minha sorte porque tinha amigos que não tinham a mesma sorte que eu... que tiveram de sair da escola e que tinham de trabalhar. Tive um amigo... a gente chamava-lhe Fernandinho, mas o miúdo nem se chamava Fernando. Esse, coitado, tinha o pai preso... não me lembro já pelo quê. Depois, a mãe estava doente já há uns anos e ainda tinha três irmãos mais novos. Teve de sair da escola e ir procurar trabalho... acabou a trabalhar numa taberna. Aquilo tantos anos a ver gente alcoólica desencaminhou o rapaz que acabou por se juntar eles. Durante muitos anos não o vi... fui encontrá-lo mais tarde quando fomos todos chamados para ir às sortes... para a Guerra Colonial.

OA: Qual era a profissão dos seus pais?

L: O meu pai trabalhava no campo. Toda a vida trabalhou no campo. Aquilo eram trabalhos sazonais que variavam de acordo com a estação do ano e os tipos de cultura que eram comuns nessa estação. Havia a apanha da azeitona que começava aí em outubro e acabava lá para janeiro ou fevereiro... e depois era a seara também que era mais durante o calor. A minha mãe estava em casa. Trabalhava em casa a limpar, a cozinhar, lavar a roupa... também cerzia panos e lenços para vender... alimentava as galinhas. Os porcos não, que ela tinha medo deles... o meu irmão quando chegava é que lhes dava de comer.


J: O meu pai era padeiro. Nós tínhamos uma padaria que era da família do meu avô materno, o pai da minha mãe. Aquilo era um negócio muito antigo já e como o meu avô só teve raparigas, antes de morrer deixou o negócio ao meu pai, porque era casado com a filha mais velha. Já a minha mãe não fazia pão... ela era mais comida e bolos e sobremesas. Ela organizava festas de casamentos e batizados e cozinhava. Foi com ela que eu aprendi a cozinhar, que ela levava-me para os casamentos para me ensinar.

OA: Como descreve o período referente aos anos antes ao 25 de Abril de 1974?

L: Não foi muito fácil porque, entretanto, os meus irmãos mais velhos, o Francisco e o António, eram gémeos e como fizeram 18 anos foram chamados para a Guerra Colonial com mais uns rapazes da sua idade lá da vila. Para além de serem menos dois a trabalhar para ajudar a sustentar a família, era uma preocupação constante. Raramente sabíamos deles... porque eles tinham ido mesmo combater. Não sabíamos se estavam vivos ou mortos... não sabíamos nada. Uns seis ou sete meses depois de irem para a Guerra, o António voltou coxo da perna esquerda. Levou uns tiros na perna e a assistência médica lá no Ultramar não era a melhor... eles eram tantos feridos que já não sabiam o que lhes fazer. Como também não podia combater assim mandaram-no para casa. Mas o Francisco ficou lá a combater até ao fim da Guerra.

J: Eu aos 16 anos fui para Lisboa trabalhar. A irmã do meu avô, que era minha tia-avó, morava na Mouraria e era dona de uma mercearia de bairro, e então ofereceu-me trabalho lá. Fiquei lá a morar na casa dela durante dois anos e recebia dinheiro por trabalhar na mercearia. Como não gastava quase nada desse dinheiro ia juntando para se um dia fosse preciso para alguma coisa. Depois, em 1972, tive que voltar para casa porque fiz 18 anos e fui chamado a ir às sortes, onde me disseram que ia para o Ultramar. Mas como a minha mãe até era uma pessoa conhecida e de alguma importância pelo trabalho que fazia eles não me mandaram para o combate, meteram-me como cozinheiro. Ainda me lembro como se fosse hoje... 3 de Novembro de 1972 parti de barco para a ilha do Sal em Cabo Verde. Éramos muitos quase todos com 18, 19 anos, e como nos tínhamos de entreter de alguma maneira, fazíamos tatuagens uns aos outros. Eu também fiz uma, um coração com a palavra mãe dentro, em homenagem à minha. É experiência de que nunca me vou esquecer, nem eu nem todos aqueles que foram comigo certamente. Às vezes até brinco a dizer que fui à guerra e não disparei um tiro... porque é a verdade. Nunca disparei nem um. Nunca matei nenhum, mas matei a fome a muitos.

OA: Consegue relatar como foi o dia 25 de Abril?

L: Recordo-me de algumas coisas, sim. Havia lá na vila uma taberna, do Senhor Figo, e normalmente era aí que se juntavam as pessoas para falar ou ouvir rádio, porque nem toda a gente tinha rádios em casa. Nunca eu tinha visto a minha vila com tanta gente na rua como naquele dia, tudo para ouvirem o que estava a passar. Na rádio estavam para lá a passar anúncios dos militares das Forças Armadas, onde falavam de democracia e liberdade, que até ao dia não era assunto que fosse permitido passar numa rádio... também passaram músicas... daquelas proibidas pela ditadura. E o hino nacional também tocou. Foi um dia bonito e de comemoração. Como a Revolução pôs fim à Guerra Colonial, uns tempos depois o meu irmão voltou para casa.

J: Eu estava no Ultramar no dia 25. Só voltei tempos depois, mas ainda em 1974. Não vivi muito de perto o 25 de Abril porque estava lá na Ilha do Sal. Nós soubemos de tudo o que se estava a passar, mas não da maneira que as pessoas que cá ficaram souberam. Nós sentimos foi as diferenças quando chegámos a casa e nos começámos a aperceber de certos aspetos que tinham mudado, principalmente em relação à liberdade.

OA: Quais foram as mudanças mais notórias e importantes que aconteceram na sociedade após 25 de Abril?

L: Houve, houve muitas mudanças. Para os homens também, mas para as mulheres ainda mais. Eu, por exemplo, desde pequena sempre tive o sonho de ser professora porque todas as professoras que tive eram más e batiam nas crianças, o que era normal, na época era assim. Mas eu sempre achei que seria boa professora, sempre gostei muito de crianças... se calhar até pela quantidade de irmãos que tive. Infelizmente nunca consegui realizar esse sonho, porque era raríssima a mulher da aldeia que conseguia formar-se, era assim que a sociedade funcionava. A mulher servia para ter filhos, cuidar deles, cozinhar e cuidar da casa. Agora já é muito diferente. O meu pai conseguiu ver a neta a formar-se em enfermagem com a maior das facilidades... nunca ele pensou em vir a ter uma neta doutora.

J: Primeiro de tudo acabou com a Guerra e eu pude voltar a casa, assim como os todos os que sobreviveram. As eleições passaram a ser livres e o voto passou a ser um direito independentemente do nível de escolaridade da pessoa. Qualquer pessoa com 18 ou mais anos passou a poder votar. Acabou-se com a PIDE e com a censura... penso que a liberdade de expressão foi dos aspetos que mais mudaram. Eu abalei de uma cidade onde qualquer grupo ou pessoa que estivesse contra ou não concordasse com o governo estava em risco de ser preso... não se podia falar, não se podia ler nada que eles não quisessem, nem ouvir, e voltei à mesma cidade, mas como se fosse outra porque tudo isso passou a ser possível.

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