“As raízes alentejanas: pelos caminhos de Beja"

Situada no topo de um planalto, Pax-Julia, como era assim conhecida na época de Júlio Cesar em 48 a.C., é hoje Beja, capital de distrito do Baixo Alentejo. Apontada como uma das cidades mais antigas da Península Ibérica, mostra-nos a sua paisagem e uma cultura fortemente enraizada na sua antiguidade.

Reportagem | Diva Parreira


Foto aérea de parte da zona histórica de Beja. Foto por Jair Prandi

Quando, em meados do primeiro milénio antes da nossa era, os povos que viviam na extensa planície que hoje conhecemos como território de Beja, instalaram um povoado numa elevação que lhes permitia controlar quilómetros de férteis campos em redor, certamente não imaginaram que estavam a dar início a uma história que se iria prolongar por mais de 3.500 anos. Eram então lançadas as primeiras pedras de uma cidade que se encontra entre as mais antigas da Península Ibérica e que, no cimo da sua colina, acompanhou, por vezes de forma dramática, a vida quotidiana e as mudanças que ocorreram nesta região. Beja, que nunca perdeu de vista a sua planície, foi uma cidade importante, capital do Sul, de portas abertas ao Mediterrâneo, centro económico e de culturas. As suas ruas foram eco de várias línguas. Por elas andaram gentes da Idade do Ferro, romanos, bizantinos, visigodos, muçulmanos, judeus e cristãos, por vezes em guerra, mas maior parte do tempo em paz. Uma mistura que faz da cidade o que ela é nos nossos dias, na sua paisagem urbana, mas também natural, no seu modo de falar, e de cantar, na sua comida e na forma como pensa e como vive o seu dia-a-dia.

Esta capital administrou juridicamente uma das regiões que constituíam a província da Lusitânia tendo sido também cidade responsável pela administração de uma região, o que nos mostra estar na presença de uma cidade fundamental no funcionamento da grande máquina administrativa que foi a regionalização romana. O espaço por excelência onde se tratava a administração jurídica provincial era o Fórum (situado perto do que é a atual Praça da República), do qual também fazia parte o templo dedicado ao culto imperial. A mudança de época e governo não lhe tiraram o poder e esta importância tem-se mostrado através de edifícios e vestígios encontrados pela cidade. É a partir da época muçulmana, no sec. XI que a cidade começa a decair perdendo o lugar de centro administrativo e religioso para Évora, que cada vez ganhava mais importância. Todas estas guerras e perdas fizeram despovoar a cidade e resumi-la a escombros traçando assim o objetivo do foral de D. Afonso III- repovoar a cidade e reconstruir as muralhas. Foi mais tarde D. Manuel I que lhe deu maior notoriedade.


Entrada Museu D. Leonor, Beja. Foto por Diva Parreira

Iniciamos um pequeno passeio pela zona histórica da Cidade de Beja na companhia de Simão Matos, professor de história e conhecedor da cidade. Num roteiro pelos pontos mais importantes da cidade, a primeira visita é ao Museu D. Leonor, antigo Convento da Conceição.

Com a vinda dos novos duques D. Fernando e D. Beatriz, funda-se no ano de 1457 o convento de Nossa Senhora da Conceição, um dos conventos de clausura mais ricos e conceituados do país, onde nasce a história de amor proibido de Mariana Alcoforado, uma freira portuguesa autora de várias cartas apaixonadas enviadas a um oficial francês, durante a guerra da restauração.

Junto a este edifício surge o Palácio dos Duques, que nos dias de hoje já não existe. Ao longo dos anos o museu tem vindo a sofrer alterações e o que podemos observar é uma pequena parte do que foi inicialmente construído, uma vez que o restante foi demolido no final do sec. XIX – “O que praticamente podemos ver agora do original é a igreja pois era a única parte que estava ligada com a cidade. É um dos monumentos desta época, final do gótico em ligação com o renascimento, mais importantes de todo o país” conta o professor. Em finais do sec. XIX este convento é transformado no que é o atual Museu Regional de Beja, aproveitando parte de antigas coleções preservadas até aos dias de hoje. Simão Matos refere que “as coleções que existiam eram muito grandes, hoje em dia o que conseguimos ver lá dentro é apenas uma percentagem mínima”. Algumas das obras em exposição neste museu são peças únicas no nosso país como por exemplo a azulejaria, bastante famosa na cultura da cidade, e a peça mais importante tem o nome de “Escudela de Pero de Faria”. Trata-se de uma peça rara de porcelana chinesa oferecida pelo Dr. Diogo de Castro e Brito ao Museu Regional. Entre muitas outras peças, este museu mostra grande parte da história não só desta cidade alentejana como também de todo o país. 

Frontaria do Convento de Nossa Senhora da Conceição 1870//2021. Foto por Diva Parreira

Partimos para o segundo ponto da nossa visita, a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. É uma igreja construída no Sec. XVII que, apesar de ser bastante simples por fora, possui uma importante e incrível cenografia por dentro, seguindo a arte maneirista portuguesa, dentro do estilo barroco.

Foi junto a uma das portas da muralha que dá acesso à praça principal de Beja que no ano de 1672 foi edificada esta igreja, junto à ermida de St. Estevão, cujo adro é partilhado. A tipologia adotada segue um modelo característico da arte maneirista portuguesa, formada por uma só nave e coberta por uma abóbada de berço e a este exterior corresponde um interior com uma sumptuosa cenografia onde a azulejaria, a escultura e a pintura confluem e Vítor Serrão (historiador português) classifica como “um dos mais sedutores testemunhos de totalidade decorativa da arte barroca do tempo de D. Pedro II”. Os Altares e paredes revestidos a talha dourada dão a esta igreja o cognome de “Igreja de Ouro” e marcam o encontro de símbolos inspirados nas Litanias Marianas e a evolução artística da nossa região, sobretudo naquela época.

Conversamos agora com Susana Mercês. A nossa guia neste ponto da cidade conta-nos que a origem desta igreja provém de “duas irmandades rivais que existiam na cidade, onde as duas queriam que a sua igreja referência fosse o mais decorada possível, era nesse aspeto que gastavam maior parte do seu dinheiro”. Quando questionada sobre qual ser realmente a parte mais importante e notória desta igreja, Susana Mercês afirma sem dúvidas que “toda esta igreja é interiormente notória, mas a joia desta obra é mesmo teto. Na época a irmandade dos Prazeres tinham um grande poder social, o que permitiu encomendar todos os materiais usados, aos melhores artistas da época”.


Altar decorado em talha dourada da Igreja de Nossa Sra. dos Prazeres. Foto por Diva Parreira

Segundo Susana Mercês, tudo tem uma simbologia, e a mesma representa “tudo aquilo que a igreja rejeita, ou seja, os prazeres de Maria. Toda esta arte representa a vida de Maria, mãe de Jesus.” O foco principal desta edificação é a parte centrar do teto desta igreja, que mostra a assunção de Maria aos céus. Simão Matos explica que “todas estas representações servem, também, para a antiga sociedade, que era menos letrada, compreender tudo o que era escrito”.

Susana Mercês conta-nos que “toda a simbologia que a Bíblia nos mostra é aqui demonstrada em cada detalhe desta obra de arte” e entende-se então que, apesar de a sua forma exterior se parecer com algo simples e minimalista, observa-se que o seu interior tem uma história e uma riqueza cultural imperdível e que deve ser, definitivamente, um ponto de paragem nesta cidade do Baixo Alentejo.

Parte principal do teto da Igreja de Nossa Sra. dos Prazeres:
Assunção de Maria aos Céus com a ajuda dos anjos. Foto por Diva Parreira

Para terminar este roteiro histórico prosseguimos para aquele que representa toda a simbologia desta cidade, o Castelo e a sua enigmática torre de menagem. Sendo o local mais importante da cidade, traz todos os anos entre 10 e 15.000 visitantes. Esta torre, edificada durante o reinado de D. Dinis no sec. XIII é considerada a torre militar mais alta da Península Ibérica, com uma altura de 40m e 197 escadas em caracol até ao topo. Trata-se de uma fortaleza gótica, apesar de composta por três salas interiores produzidas com diferentes estilos e considerada por alguns artistas uma obra-prima da arquitetura militar gótica europeia. Para além desta torre, são visíveis ainda as muralhas, restando apenas vinte e oito torres das antigas quarenta que ali existiam.

Para nos dar mais informação sobre este histórico monumento, falamos com José Silva, também um dos guias turísticos da cidade e apaixonado pelo grandioso monumento. Quando questionado sobre a “junção” arquitetónica entre o gótico, manuelino e românico na mesma torre, José Silva responde que “apesar de a obra ter começado no sec. XIII, não foi terminada apenas nessa época. Começou no reinado de D. Dinis e mais tarde ganhou todas as influências demonstradas através da sua arquitetura”. O guia conta ainda que a torre tem três significados: “torre de vigia, ou seja, uma das primeiras torres militares a sair da praça de armas e juntar-se à muralha passando de uma defesa passiva para uma defesa ativa. Tem outra parte bélica conhecido pelo 'mata cães' e também a leitura simbólica e religiosa sobre a imponência desta mesma torre de que 'quanto mais alta for, mais perto estou de Deus”. Na tentativa de reinventar o restante da cidade, foram criados dois programas para, segundo José Silva, “reformular a oferta que Beja tem. Existe muita coisa para fazer e conhecer nesta cidade que poucos sabem.”, um deles tem o nome de “Pelas aldeias de Beja” onde se fazem passeios turísticos pelas aldeias que rodeiam a cidade e também o “vem a Beja com vagar” que pretende mostrar que Beja é muito mais do que um castelo e um museu e sim uma cidade “rica em cultura, gastronomia, que vale a pena dispensar um dia para visitar.”

Torre de Menagem do Castelo de Beja. Foto por Diva Parreira

Não só o povo residente possui a cultura existente numa cidade e Beja não é exceção. Ao ser interrogado sobre qual o sentimento de um guia turístico e grande apaixonado por esta cidade alentejana de dar a conhecer a história de cada monumento e partilhar com outros, tamanha sabedoria, José afirma que “um guia turístico tem de ser um contador de histórias, pois se não a soubermos contar as pessoas perdem o interesse. Beja é uma cidade com imensa história, e enquanto guias turísticos procuramos mostrar aos outros a nossa paixão por esta cidade”. 

Simão Matos, também amigo de José Silva, afiança que “mesmo alguém que não conheça a cidade e faça uma visita com o José, consegue sentir a paixão demonstrada por esta cidade. As pessoas acham que Beja não tem nada e muitas vezes quando chegam aqui e ouvem esta história começam realmente a pensar na cultura que esta cidade nos dá”. Não só destes três monumentos se faz a cultura desta terra, mas são essenciais para entender as respetivas épocas distintas que marcaram este povo. Somos também convidados a visitar outros pontos turísticos tais como o Museu do Sembrano, as escavações da rua da moeda, a Igreja da Misericórdia e também algumas ruas que nos mostram mais acerca da história desta cidade.

Uma cidade com grande diversidade cultural ao longo dos séculos, e que hoje se traduz numa rica mistura cultural que a caracteriza. Ficou bastante marcada nos monumentos, na música, no seu vocabulário, nas duas comemorações (Beja romana, etc...) e nas suas tradições. Uma riqueza que enche este povo alentejano de orgulho.

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