“Trabalhava todos os dias só a pensar no regresso a casa, à minha casa ao meu Portugal”

De uma pequena aldeia alentejana à grande cidade de Paris. Quantos não foram os portugueses, nas décadas de 60 e 70, que deixaram as suas casas e famílias à procura de uma vida melhor lá fora. “Na França eu estava bem, ganhava bem, trabalhava bem, estava feliz. Mas eu só pensava na minha casa e na minha família em Portugal”.
Reportagem | Lia Revés


 Rio Sena e Torre Eiffel retratados numa fotografia de 1970. Créditos: Maria José 


A busca por uma vida melhor era grande. Entre os finais dos anos 50 e o princípio dos 70, cerca de um milhão de portugueses emigrou para França. Muitos com a pouca sorte de ficarem instalados em bairros de lata, que rodeavam Paris, mais conhecidos por "bidonville". Felizmente, não foi o caso dos habitantes desta pequena terra alentejana, que mais conhecida por Gomes Aires teve um grande número de habitantes a deixar Portugal.

A emigração para França

A emigração portuguesa para a França começa a ganhar expressão nos finais dos anos 50, mas é nas décadas de 60 e 70 que atinge o pico. A pobreza, a ditadura e a falta de perspetivas de futuro em Portugal que não demonstrava qualquer evolução, fez com que vários portugueses procurassem uma vida melhor lá fora, pois as possibilidades de sonhar e desejar, querer e poder ter mais na vida, que não fosse aquele conformismo do tradicional português humilde, eram maiores.

Com o final da Guerra Colonial, toda esta situação veio reforçar a emigração para a Europa. Foram vários os jovens que mantinham posições no exército e deixassem Portugal através da fuga mais conhecida por “viagem a salto” que permitia saírem do país sem o conhecimento das autoridades. Os homens iam primeiro, as mulheres iam quando fosse possível. Muitos atravessaram toda a Península Ibérica a pé́. Não era fácil, era todo um processo complexo que podia demorar dias, talvez semanas a completar. Existiam lugares específicos por onde passar e com sorte, haviam pessoas ao longo do caminho dispostas a ajudar.

O percurso feito “a salto”

Lisboa a 22 de novembro de 1968, António Revés deixa oficialmente o seu cargo no exército e inicia-se como trabalhador na antiga fábrica da Companhia Previdente. O seu tempo como militar trouxe-lhe boas pessoas, algumas para a vida, como é o caso de Augusto Pereira, que o incentivou a emigrar para França.

António Revés foi dos primeiros quatro irmãos a partir para a França. Partiu no dia 4 de abril de 1969, tinham passado apenas 5 meses desde que saíra do exército, o que na altura não era tempo suficiente para ter permissão para deixar o país. Por isso, foi a “a salto”, completou todo um percurso específico, com lugares específicos e pessoas que o pudessem ajudar a chegar ao destino.

Deixa Lisboa e parte para a Guarda, através das indicações dadas por Augusto Pereira, amigo que o ajudou a realizar este percurso, segue todo um plano para que consiga deixar Portugal sem ser apanhado. Relembrando que viviam-se tempos de ditadura, sobre o nariz de Salazar, e a PIDE que tinha poder de controlo sobre tudo e todos. Era necessário um especial cuidado, tanto nas ações como nas palavras. Qualquer coisa podia ser o suficiente para que tudo corresse mal, pois ser apanhado a “fugir” do país implicaria sofrer grandes consequências para a vida.

Parte de Guarda para o Sabugal e numa pequena taberna, não muito movimentada, encontra-se com um homem que o vai ajudar a sair de Portugal. As informações são claras, nada podia falhar. De táxi, dirige-se a uma pequena aldeia com o nome de Aldeia do Bispo, perto da fronteira e longe das atenções possíveis da PIDE. É deixado em Espanha e existe uma troca necessária de táxis, “pediu-me que fosse falar com a guarda nacional, não me queria levar sem ter as certezas de que não existia problemas por me levar até à cidade de Rodrigo. Nesse momento fiquei com medo, as probabilidades de me enviarem diretamente para Portugal era grandes e se eu fosse apanhado, iria sofrer grandes consequências”, “disse-lhe que estava apenas de passagem, que queria ir às festas da cidade de Rodrigo e que regressava mal terminassem. Mas ele percebeu que eu estava ali ilegalmente e não me denunciou, ajudou-me. Disse-me que seguisse sem contar a ninguém que tinha estado ali presente, e assim o fiz. Retirei-me e agradeci com um sorriso na cara, foi um bom homem e eu nunca mais me esqueci dele. Assim parti descansado no táxi até à cidade”.

Após ter chegado a Rodrigo, esperou pela chegada da manhã seguinte e de comboio foi até a Hendaye, na fronteira de Espanha e França. “Cheguei lá e dois polícias franceses abordaram-me perguntando pela minha documentação. Não falava francês, não percebia o que queriam, pelo qual me jogaram as mãos à carteira e revistaram a minha documentação. Fui levado até ao posto e lá o comissário deu me indicações para o comboio que me levaria até a Mont-de-Marsan, onde permaneci um ano a trabalhar na fábrica de pneus da Michelin”.

Percurso “a salto” de António Revés até França. Partida de Lisboa, onde se 

encontrava, até chegar a Mont-de-Marsan, França. Créditos: Google Maps. 


Para além de António, o trajeto foi realizado por vários portugueses que saíram em segredo de Portugal com destino a França. Portugueses como Manuel Augusto Guerreiro, que habitante da aldeia de Gomes Aires, deixou o país em 1970 e percorreu caminhos em direção à liberdade.

“Sempre fui contra o regime e contra à situação que Portugal se encontrava. Não queria viver daquela maneira, o dinheiro nunca era o suficiente e eu queria crescer na vida. Até que um dia decidi, como tantos outros portugueses, deixar o meu país e ir a caminho da liberdade, da minha liberdade”.

Jovem militar português em 1969. Créditos: António Revés


A vida em França

De Lisboa para França, em 1969 e tranquilamente, Maria José atravessa a Península Ibérica de comboio até Paris. Alguns dos seus irmãos já se encontravam na cidade, facilitando a sua chegada, pois já se encontrava empregada e com casa para viver.

Trabalhou muitos anos como porteira, nessa altura existia muita oferta de trabalho, tanto como porteira como trabalhador em fábricas de carros. A porteira costumava tratar dos assuntos do prédio e em troca recebia alojamento gratuito.

“Cheguei a casa com objetivos bem definidos. Eu sabia que estava ali para trabalhar e não para me distrair do que era importante. Trabalhava dias inteiros arduamente e só não trabalhava mais porque não podia”, conta-nos assim, Maria José.

Dia do casamento de Maria José e Olímpio Guerreiro, 1974. Créditos: Maria José 


Os anos foram passando, “lembro-me de estar na cozinha a preparar o almoço, quando me batem à porta a gritar que têm notícias de Portugal. Lembro-me tão bem, contaram-me que tinha havido um golpe de estado e que o nosso país estava finalmente livre. Senti em mim uma alegria, uma pequena emoção. Mas ainda não era tempo de regressar, tinha ainda muito caminho pela frente”.

Em 1974, Maria com 37 anos encontra o seu amor, casa-se com Olímpio Guerreiro no qual o fruto dessa união nasceu uma menina. “Fui mãe muito tarde, mas escolhi ser. Gostava de aproveitar a vida e nunca fui uma mulher de pressas, nem para casar ou ter filhos. Sempre respeitei o meu tempo e a minha vontade” afirma Maria José.

Por outro lado, encontramos Francília Josué, partiu para França em 1977 ao encontro do marido em Paris. Encontrou emprego como costureira e chegou a costurar vestidos de noiva para clientes das altas sociedades da altura. “Fui para França ter com o meu marido e fiz o que mais gostava de fazer, costurar. Fazia vestidos lindíssimos e sempre tive imenso orgulho no meu trabalho. Naquela altura uma costureira era considerada como um elemento importante, hoje em dia são trabalhos que já existem muito pouco, o que me deixa profundamente triste”.

Reencontros

Todos os portugueses eram muito próximos. Aos sábados costumavam encontrar-se no jardim da Campanha, faziam uma espécie de piquenique e cada um trazia um tipo de comida para partilhar.

“Durante a semana só se trabalhava, cada um tinha a sua vida, mas o sábado era altura da semana que mais ansiava. Eram momentos bons que tínhamos uns com os outros. Almoçávamos e por vezes de tanto conversar, só saíamos lá de noite. Falávamos de tudo e erámos felizes” conta-nos Maria José.

No entanto, nessas conversas surgia muitas vezes temas como o regresso a Portugal, na qual António refere que “carregávamos todos a saudade de casa”, pois cada vez existia mais a vontade de regressar.

Agenda de França e fotografias em Portugal. Créditos: Maria José 


Ser português em França

Podemos dizer que os portugueses em França tiveram uma integração mais rápida do que os espanhóis, italianos, polacos, entre outros. Os franceses na altura possuíam uma visão positiva pois consideravam-nos muito trabalhadores.

Não existia qualquer preconceito perante os emigrantes portugueses, isto porque na altura existia muitos franceses que achavam que Portugal era uma província de Espanha. Por isso não era conhecido como inimigo e nessa medida, também não havia preconceitos sobre Portugal nem sobre os portugueses.

A atitude por parte da população portuguesa também foi positiva. Eram trabalhadores e humildes, isso e mais um conjunto de fatores que fizeram que muitos encontrassem a sua forma de inserção na população francesa.

“Trabalhei para uma senhora muitos anos, era a madame Chevallier, era uma senhora impecável. Ajudou-me sempre muito quando precisei, e isso ficarei sempre grata. Lembro-me de quando dei a notícia que ia regressar a casa, à minha casa, ela respondeu-me “Si un jour tu décides de revenir Maria, les portes de ma maison te seront toujours ouvertes” e eu calmamente respondi “se Deus quiser, ficarei por Portugal até ao fim”.

Madame Chevallier e Maria José no dia do seu casamento, 1975. Créditos: Maria José 


Regresso a casa

Aos poucos, os portugueses que um dia tiveram que saltar as fronteiras, deixando tudo para trás na luta e na procura de uma vida melhor, regressaram a casa. “Em França, cada um tinha a sua vida, a sua família, a sua casa, os seus amigos. E aquilo que nos unia era o forte desejo de regressar. A luta era igual para todos e nisso, sempre tivemos ligados” afirma Francília durante a sua entrevista.

Hoje Gomes Aires tem mais que uma história, tem várias. Todos os portugueses regressaram de volta a Portugal, ao Alentejo, lugar onde o seu coração pertence.

“Foi o dia mais feliz da minha vida, saber que depois de tantos anos a trabalhar, tenho finalmente a possibilidade de ter uma vida melhor. E assim o fiz. Investi e arranjei uma casa à minha maneira, não havia mais aquela necessidade de contar o dinheiro ao fim do mês, poupámos e soubemos investir. Hoje temos a nossa casinha e a nossa pequena horta, e somos felizes assim”, termina Maria José.

Dia de chegada a Portugal, 1982. Créditos: Maria José 



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