David Santos
José não esquece o dia em que partiu. África era até então um país desconhecido, uma caixa por abrir, uma obrigação pertinente e longínqua. O país assim o queria: lutar por aquilo a que pensava que tinha direito. José também achava que tinha direito a não ir, mas a obrigação e o dever de defender todo um país era maior que a falta de vontade. De Portugal sai um homem jovem e humilde, de África o vento sopra e traz-nos as histórias e aventuras lá vividas.
José Joaquim Martins tem 74 anos. Homem baixo e de boa estrutura, vai folheando o álbum de fotografias que colecionou da Guerra do Ultramar. Conta-nos e descreve-nos cada memória esboçando, de vez em quando, um sorriso fugaz. A guerra é coisa que não o orgulha.
Mas José Martins não trabalhava só com papel e caneta. Chegou a fazer serviços de guarda e vigia. Neles fazia turnos numa espécie de trincheiras. E há ainda outro facto: também foi fotógrafo. Aliás, como nos conta, foi na guerra que aprendeu a arte da fotografia. Hoje, em casa, ainda guarda uma máquina fotográfica muito antiga.
Ao contrário do que se possa pensar, e num contexto de guerra tão grande, os nativos não olhavam os portugueses de lado. Pelo menos assim o sentiu José: "A comunicação naquela altura era pouca. Passávamos, olhávamos, víamos. Até íamos dançar aos bailes com eles. Uma vez, fui a um casamento protestante e até fui eu que o fotografei. Depois comemos todos juntos”, conta.
Naquele tempo, Zé da Bicada fez inúmeras amizades. Conhecia pessoas do Algarve, da mesma especialidade, que fizeram tropa e recruta com ele. No entanto, admite que aquelas eram amizades de guerra e quando as pessoas se vêem numa situação de conflito, têm tendência a estarem mais unidas. Dessas muitas amizades surgem momentos. E desses momentos surgem histórias. Aliás, existe uma história muito caricata que foi fruto da típica impulsividade e irreverência de se ser jovem.
Já Manuel Martins, irmão de José, não foi para a guerra. Levaram-no. Diz-nos isto porque em 1962, ano em que partiu para Angola, havia uma percentagem mínima de homens que ia voluntariamente. E a noção que se tinha das coisas era muito diferente da realidade: “nós saímos daqui de Portugal com muita teoria. Mas as coisas lá tinham de ser práticas”.
Manuel também não esquece o dia em que o irmão imergiu no conflito. Com nostalgia, relembra o que sentiu: “o meu irmão era mais novo 3 anos. Como eu já tinha passado 25 meses na guerra, já tinha interiorizado muita coisa e, quando chegou a vez dele, achei que não era o fim do mundo. Podia até ser. Não havia garantia nenhuma de que ele voltasse. É verdade que senti algumas saudades dele. Mas houve uma atenuante para não sentir ainda mais: eu naquela altura estava muito ocupado na minha nova profissão. Estava a começar um estágio. Esse sentimento de dúvida apodera-se de muita gente. O sistema nervoso é diferente de pessoa para pessoa. No meu caso, eu próprio achei que não ia voltar, pois o conflito estava numa fase de crescimento”, confessa. No seio da família ainda havia uma certa esperança, apesar de estar segura por um fio muito ténue: “o meu irmão não parecia estar em desespero quando foi para a guerra. E eu também não. Eu fui e voltei e, portanto, também estava à espera que ele fizesse o mesmo”.
Durante a guerra, e motivado pelos tempos que corriam, surgiu o Serviço Postal Militar (SPM), ou seja, uma correspondência gratuita entre militares. Essa correspondência era transportada de avião e por isso ficou conhecida por aerograma. Não havia custos e podia escrever-se o que se quisesse. Foi assim que José e Manuel comunicaram durante tanto tempo. Sendo este serviço exclusivo para militares, a exclusividade de comunicação com outro irmão que estava na guerra era mais que evidente. “Pelo que os meus pais contaram, eu [Manuel] escrevia mais do que ele. Ele não dava tantas notícias. Era esse o comentário que eu ouvia lá em casa. Ainda tenho esses aerogramas guardados. O problema é que não consigo ler muitos de seguida porque têm uma carga emocional muito forte”.
Quem também sofreu e teve um grande desgosto foi a mãe, Avelina. Mais pelo primeiro do que pelo segundo. “Considero que para a nossa mãe, a minha partida provocou maior sofrimento do que a partida do meu irmão”, conta Manuel. “Isto porque já me tinha tido a mim na guerra. Quando chegou a vez do meu irmão, as coisas foram diferentes”.
Mas da casa de José chega-nos ainda uma outra voz. Uma voz que fala de um amor que só foi consumado depois da guerra. Olívia Teixeira, de 72 anos conta-nos isso mesmo. Emocionada, diz que houve uma interrupção, para depois haver uma confirmação. “Nessa altura já o conhecia. Mas não soube que ele foi para a guerra. A nossa situação ainda não era bem um namoro. Íamos namoriscando. Ele foi para Lisboa e nós íamos escrevendo um ao outro. Depois não soube mais nada dele. Só começámos a namorar a sério quando ele regressou”. No tempo de José e Olívia, as pessoas não se apercebiam do que era a guerra. Na zona onde moravam não havia televisões nem rádios. Agora, nos dias em que as possibilidades económicas aumentaram, a noção das pessoas também aumentou nessa proporção. A noção que têm sobre a guerra baseia-se em imagens de televisão e fotografias antigas.
José diz que a guerra não devia existir. Tem o sentimento de que aquelas mesmas colónias não nos pertenciam. Aponta a solução da entrega pacífica. Lembra-se de um tempo que já lá vai e não volta mais. Não tem que voltar. Afinal, a guerra é um acontecimento inesquecível, mas a necessidade de a esquecer é maior.
José não esquece o dia em que partiu. África era até então um país desconhecido, uma caixa por abrir, uma obrigação pertinente e longínqua. O país assim o queria: lutar por aquilo a que pensava que tinha direito. José também achava que tinha direito a não ir, mas a obrigação e o dever de defender todo um país era maior que a falta de vontade. De Portugal sai um homem jovem e humilde, de África o vento sopra e traz-nos as histórias e aventuras lá vividas.
José Joaquim Martins tem 74 anos. Homem baixo e de boa estrutura, vai folheando o álbum de fotografias que colecionou da Guerra do Ultramar. Conta-nos e descreve-nos cada memória esboçando, de vez em quando, um sorriso fugaz. A guerra é coisa que não o orgulha.
Janeiro de 1966. Foi nesta data que rumou em direção a Lisboa e, olhando para o horizonte, sentiu a incerteza de um dia voltar. “Saímos de Lisboa no Vera Cruz, fizemos escala em Luanda e depois fomos para Moçambique. Primeiro chegámos a Lourenço Marques (Maputo). Fizemos lá a parada militar, foi a receção das tropas. Depois foram-se distribuindo os outros batalhões que iam no navio. Éramos 3 batalhões – 1878, 1879 e 1880. O meu era o 1878. Depois, José e o seu grupo estiveram dois dias em Lourenço Marques e embarcaram novamente no Vera Cruz para o Norte de Moçambique. Iam deixar mais dois batalhões: um em Nacala e o outro em Mocímboa da Praia (batalhão 1879).
Zé da Bicada, como lhe chamam, diz que havia nele uma certa inconsciência em relação à palavra “guerra”. “A juventude não me deixava pensar ainda em muitas coisas”, revela. “Não tinha noção do que era a guerra ainda”, acrescenta. Ao chegar, muitas foram as diferenças encontradas entre Portugal e Moçambique: pessoas muito diferentes – outra cultura, outra raça. Naquele ambiente campestre, o português era mais que deficitário e as pessoas não eram tão formadas como nas grandes cidades. Eram próprios os dialectos locais. Lá, a sobrevivência era a forma de viver daquelas gentes.
“Notei todas as diferenças possíveis. Primeiro, era um país de África, com outra cultura e outra raça, outra cor de pele. Foi um grande choque. Naquele ano de 1966 não estávamos habituados aos africanos. Havia em Lisboa, mas no Algarve ainda não era comum essa realidade. Lembro-me que a maneira de vestir era muito diferente e ainda havia um certo primitivismo nessa altura. Fora das grandes cidades, as pessoas viviam em palhotas feitas de capim, madeira e terra, com uma só dependência. Ou seja, a sala, o quarto e a cozinha eram um só”.
Zé da Bicada, como lhe chamam, diz que havia nele uma certa inconsciência em relação à palavra “guerra”. “A juventude não me deixava pensar ainda em muitas coisas”, revela. “Não tinha noção do que era a guerra ainda”, acrescenta. Ao chegar, muitas foram as diferenças encontradas entre Portugal e Moçambique: pessoas muito diferentes – outra cultura, outra raça. Naquele ambiente campestre, o português era mais que deficitário e as pessoas não eram tão formadas como nas grandes cidades. Eram próprios os dialectos locais. Lá, a sobrevivência era a forma de viver daquelas gentes.
“Notei todas as diferenças possíveis. Primeiro, era um país de África, com outra cultura e outra raça, outra cor de pele. Foi um grande choque. Naquele ano de 1966 não estávamos habituados aos africanos. Havia em Lisboa, mas no Algarve ainda não era comum essa realidade. Lembro-me que a maneira de vestir era muito diferente e ainda havia um certo primitivismo nessa altura. Fora das grandes cidades, as pessoas viviam em palhotas feitas de capim, madeira e terra, com uma só dependência. Ou seja, a sala, o quarto e a cozinha eram um só”.
José Joaquim conta-nos também que nunca chegou a sentir medo. Nessa altura era escravo da idade. E essa mesma idade tornava-o inocente. No entanto, a inocência não lhe conseguia cobrir na totalidade o sentimento enorme de saudade. “Havia sempre o mito de deixar o tempo passar. E não sentia a necessidade de contar a passagem do tempo, pois estava sempre ocupado no ofício de escriturário”, relembra.
José era escriturário: tratava dos papéis da guerra. Era uma ocupação mais descansada que lhe preenchia a maior parte do tempo. E é por isso que se considera um sortudo: por não lhe ter acontecido nada de mal; por não ter ficado com nenhum trauma de guerra. Apesar desta dádiva, a de ter ficado tudo bem, Zé da Bicada viu muita gente a sofrer. Os ataques eram constantes. Havia feridos. Eram muitos os soldados que não se adaptavam psicologicamente ora à perda de camaradas, ora às saudades de casa. Muitos saíam para o mato e não sabiam sequer se voltavam. O risco era tremendo. Apesar de tudo, este homem, nascido no concelho de Mértola, justifica a ausência de qualquer trauma com a sua maneira de ser. “A minha personalidade é muito forte. Sou realista, não sou sonhador”, confessa.
José era escriturário: tratava dos papéis da guerra. Era uma ocupação mais descansada que lhe preenchia a maior parte do tempo. E é por isso que se considera um sortudo: por não lhe ter acontecido nada de mal; por não ter ficado com nenhum trauma de guerra. Apesar desta dádiva, a de ter ficado tudo bem, Zé da Bicada viu muita gente a sofrer. Os ataques eram constantes. Havia feridos. Eram muitos os soldados que não se adaptavam psicologicamente ora à perda de camaradas, ora às saudades de casa. Muitos saíam para o mato e não sabiam sequer se voltavam. O risco era tremendo. Apesar de tudo, este homem, nascido no concelho de Mértola, justifica a ausência de qualquer trauma com a sua maneira de ser. “A minha personalidade é muito forte. Sou realista, não sou sonhador”, confessa.
![]() |
José no seu ofício, junto da máquina de escrever. |
Mas José Martins não trabalhava só com papel e caneta. Chegou a fazer serviços de guarda e vigia. Neles fazia turnos numa espécie de trincheiras. E há ainda outro facto: também foi fotógrafo. Aliás, como nos conta, foi na guerra que aprendeu a arte da fotografia. Hoje, em casa, ainda guarda uma máquina fotográfica muito antiga.
Ao contrário do que se possa pensar, e num contexto de guerra tão grande, os nativos não olhavam os portugueses de lado. Pelo menos assim o sentiu José: "A comunicação naquela altura era pouca. Passávamos, olhávamos, víamos. Até íamos dançar aos bailes com eles. Uma vez, fui a um casamento protestante e até fui eu que o fotografei. Depois comemos todos juntos”, conta.
Naquele tempo, Zé da Bicada fez inúmeras amizades. Conhecia pessoas do Algarve, da mesma especialidade, que fizeram tropa e recruta com ele. No entanto, admite que aquelas eram amizades de guerra e quando as pessoas se vêem numa situação de conflito, têm tendência a estarem mais unidas. Dessas muitas amizades surgem momentos. E desses momentos surgem histórias. Aliás, existe uma história muito caricata que foi fruto da típica impulsividade e irreverência de se ser jovem.
“Havia uma zona de Moçambique que se chamava Montepuez”, conta com um sorriso. “Lá existia um grande morro. Éramos cinco e decidimos subi-lo. Do lado onde subíamos tínhamos que ir de gatas. Do outro lado não era íngreme e havia uma missão de freiras. Então, um moço do nosso grupo decidiu pegar fogo ao morro. No dia seguinte houve lá um grande incêndio”. Mas não foi só este acontecimento que marcou este homem de 74 anos. José ainda se lembra de um massacre que houve no dia de Páscoa num baile, quando alguns soldados foram cercados pelos nativos. Ou da vez em que a carrinha Berley avariou no caminho e o grupo ficou sem armas, completamente isolado no mato.
![]() |
José e a história do morro. |
Já Manuel Martins, irmão de José, não foi para a guerra. Levaram-no. Diz-nos isto porque em 1962, ano em que partiu para Angola, havia uma percentagem mínima de homens que ia voluntariamente. E a noção que se tinha das coisas era muito diferente da realidade: “nós saímos daqui de Portugal com muita teoria. Mas as coisas lá tinham de ser práticas”.
Manuel também não esquece o dia em que o irmão imergiu no conflito. Com nostalgia, relembra o que sentiu: “o meu irmão era mais novo 3 anos. Como eu já tinha passado 25 meses na guerra, já tinha interiorizado muita coisa e, quando chegou a vez dele, achei que não era o fim do mundo. Podia até ser. Não havia garantia nenhuma de que ele voltasse. É verdade que senti algumas saudades dele. Mas houve uma atenuante para não sentir ainda mais: eu naquela altura estava muito ocupado na minha nova profissão. Estava a começar um estágio. Esse sentimento de dúvida apodera-se de muita gente. O sistema nervoso é diferente de pessoa para pessoa. No meu caso, eu próprio achei que não ia voltar, pois o conflito estava numa fase de crescimento”, confessa. No seio da família ainda havia uma certa esperança, apesar de estar segura por um fio muito ténue: “o meu irmão não parecia estar em desespero quando foi para a guerra. E eu também não. Eu fui e voltei e, portanto, também estava à espera que ele fizesse o mesmo”.
Durante a guerra, e motivado pelos tempos que corriam, surgiu o Serviço Postal Militar (SPM), ou seja, uma correspondência gratuita entre militares. Essa correspondência era transportada de avião e por isso ficou conhecida por aerograma. Não havia custos e podia escrever-se o que se quisesse. Foi assim que José e Manuel comunicaram durante tanto tempo. Sendo este serviço exclusivo para militares, a exclusividade de comunicação com outro irmão que estava na guerra era mais que evidente. “Pelo que os meus pais contaram, eu [Manuel] escrevia mais do que ele. Ele não dava tantas notícias. Era esse o comentário que eu ouvia lá em casa. Ainda tenho esses aerogramas guardados. O problema é que não consigo ler muitos de seguida porque têm uma carga emocional muito forte”.
Quem também sofreu e teve um grande desgosto foi a mãe, Avelina. Mais pelo primeiro do que pelo segundo. “Considero que para a nossa mãe, a minha partida provocou maior sofrimento do que a partida do meu irmão”, conta Manuel. “Isto porque já me tinha tido a mim na guerra. Quando chegou a vez do meu irmão, as coisas foram diferentes”.
Mas da casa de José chega-nos ainda uma outra voz. Uma voz que fala de um amor que só foi consumado depois da guerra. Olívia Teixeira, de 72 anos conta-nos isso mesmo. Emocionada, diz que houve uma interrupção, para depois haver uma confirmação. “Nessa altura já o conhecia. Mas não soube que ele foi para a guerra. A nossa situação ainda não era bem um namoro. Íamos namoriscando. Ele foi para Lisboa e nós íamos escrevendo um ao outro. Depois não soube mais nada dele. Só começámos a namorar a sério quando ele regressou”. No tempo de José e Olívia, as pessoas não se apercebiam do que era a guerra. Na zona onde moravam não havia televisões nem rádios. Agora, nos dias em que as possibilidades económicas aumentaram, a noção das pessoas também aumentou nessa proporção. A noção que têm sobre a guerra baseia-se em imagens de televisão e fotografias antigas.
![]() |
Para José Martins, a guerra ainda é difícil de esquecer. |
José diz que a guerra não devia existir. Tem o sentimento de que aquelas mesmas colónias não nos pertenciam. Aponta a solução da entrega pacífica. Lembra-se de um tempo que já lá vai e não volta mais. Não tem que voltar. Afinal, a guerra é um acontecimento inesquecível, mas a necessidade de a esquecer é maior.
Comentários
Enviar um comentário