Reportagem | Lígia Oliveira
“O comecinho era tudo legal, mil maravilhas. Ficávamos juntos o tempo inteiro. Mas eu era muito ciumenta, ele também. Ele não me deixava usar roupa curta. Eu adorava usar salto, ele não deixava. Falava que eu ficava feia”. A frase é de Luiza*, mas o drama faz parte da vida de muitas mulheres que, assim como ela, sofreram ou sofrem com um relacionamento abusivo. A colaboradora do Olhares Académicos Lígia Oliveira dá conta alguns casos registados no Brasil, exemplos de uma realidade que não conhece fronteiras.
Luiza conheceu seu ex-companheiro em uma festa de formatura da escola de sargentos em que ele servia. Ela tinha 14 e ele 19. “A gente tinha um amigo em comum, que nos apresentou, aí ele pediu meu número e começamos a conversar”, ela conta. O começo do namoro foi reprovado pelos pais que achavam que a menina era muito nova para namorar: “eu ficava pedindo e chorando, ela [sua mãe] viu que eu estava triste e acabou deixando”, afirma. Após a aprovação, os dois começaram o relacionamento sério e, como moravam em cidades diferentes, em pouco tempo já tinham uma vida de casados.
Aos 17 anos, Luiza começou a perceber que o relacionamento entre os dois demonstrava sinais de abuso. Existia um forte jogo psicológico e a vontade do namorado sempre sobrepunha à dela. “Como ele morava em outra cidade ele ia p'ra minha casa só no final de semana. Ficava lá em casa e minha mãe cozinhava e lavava as roupas dele. Eu sempre queria sair, mas ele falava que estava muito cansado. A gente sempre brigava por causa disso, mas acabávamos fincando em casa. E quando saíamos ele bebia e nós brigávamos ainda mais”.
Assim como Luiza, várias mulheres têm como marcas nos seus relacionamentos abusos psicológicos. De acordo com a Desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e Superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica de Familiar, Evangelina Castilho, a violência psicológica corresponde a uma série de atitudes que causem dano emocional na vítima, além da tentativa de degradar ou controlar o outro.
Por mais que ainda seja um fenómeno pouco compreendido pela sociedade, os dados da central de atendimento a mulher, que atendem o Brasil, Portugal e mais 12 países, já mostram que as denúncias de violência estão aumentando. No ranking das mais cometidas a psicológica ocupa o segundo lugar. Em 2014, do total de mais de 52 mil denuncias, cerca de 17 mil corresponderam a violência psicológica, um terço do total.
Evangelina Castilho aponta que este tipo violência é um reflexo de uma sociedade patriarcal. “Essa concepção de superioridade do homem sobre a mulher vem desde a Grécia antiga, passando, em especial, pelo Império Romano, onde o homem tinha o domínio público, da cidade, da guerra, dos povos vencidos, enquanto a mulher ficava restrita ao domínio privado da sociedade familiar”, afirma a desembargadora.
O fator cultural e a desinformação contribuem para que casos como esse continuem acontecendo sem que seja denunciado por parte da vítima ou das pessoas próximas a ela. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon e o Data Popular mostra que 56% dos homens já cometeram algum tipo de agressão contra uma companheira, sem saber que a atitude se caracterizava como violência.
Luiza não percebia que as decisões do ex-companheiro poderiam comprometer o seu futuro. “Ele me falava que queria que eu fizesse a faculdade de pedagogia. Eu nunca quis, eu sempre quis psicologia, mas acabei acatando e fiz o que ele queria”.
A briga era recorrente no relacionamento dos dois e os jogos psicológicos eram usados como arma para fazer Luiza se sentir culpada: “depois das brigas ele ficava na dele, às vezes ele vinha atrás, mas na maioria das vezes era eu quem ia pedir desculpas. Ele sempre me fazia acreditar que eu era a errada. Sempre mesmo. Depois ele ficava carinhoso. Nunca me bateu. Ele sempre se fez de bom moço e vítima”.
Após ver que a faculdade de pedagogia não era o certo para ela, Luiza abandonou o curso e prestou vestibular para psicologia. Ao entrar na faculdade percebeu que não se sentia bem com as imposições de seu companheiro e resolveu dar um basta na relação. “Ele aceitou bem o final do namoro, mas tentou me convencer de que eu ia me arrepender. Depois ele tentou voltar jurando que ia melhorar em tudo que eu não gostava nele”. Mesmo com a pressão ela optou por não voltar atrás em sua decisão, até que descobriu a gravidez. “Nossa, mas foi um choque. Não gosto nem de lembrar desse momento. Hoje minha filha é uma benção na minha vida, mas foi muito difícil”, lamenta.
Luiza conta que durante a gravidez ele ajudava ela com apenas 100 reais, cerca de 20 euros, “O dinheiro era muito pouco, eu fiz todos os exames em médico particular e tinha os remédios. Além disso, eu me sentia muito sozinha, porque ele já estava com outra namorada e eu estava lá sozinha com o filho dele na barriga”.
O bom moço
Um fator que é comum dentro de um relacionamento abusivo é a família proteger o agressor, o que acaba prejudicando o combate a este tipo de violência. A desembargadora Evangelina afirma que a família pode refletir as concepções da sociedade patriarcal e, por isso, protege o homem, ainda que seja autor de violência contra a mulher. “Para superar essa violência, ou, ao menos, para reduzi-la, é preciso consciencializar a sociedade sobre a gravidade da agressão à mulher”, aponta.
Luiza sentiu isso na pele. Separada de seu ex-companheiro, a família do rapaz começou a provocar a menina. “Eles postavam nas redes sociais textos e fotos direcionados a mim em relação a atual noiva dele. Falavam que agora ele estava com a mulher certa, que agora estava bem”. A pressão a família foi tão grande que ela teve que fazer um exame de ADN para comprovar a paternidade da criança. “Eu me senti um lixo, pois eu dediquei muito tempo da minha vida a nós dois. Saí da minha cidade sete dias depois de ter feito uma cesariana, ainda com os pontos, com um bebê de uma semana no colo e fui a uma cidade vizinha fazer o exame. Eu queria morrer”.
Meu mundo era ele
Muitas vezes no relacionamento há uma dependência entre a vítima e o agressor, que pode ser dependência financeira ou emocional, o que dificulta no processo de separação, ou até mesmo impede a vítima de denunciar o companheiro.
Luiza conta que, apesar de todos os abusos sofridos, precisou de muito tempo para conseguir se desprender desse relacionamento. “Eu me acostumei com uma rotina que não gostava, eu não era bem tratada pela família dele, ele bebia em todas as festas de família e me fazia sentir mal naquele ambiente. Mas ainda assim eu não queria largar, eu pensava que meu mundo era ele”, conta.
Quando o sonho vira pesadelo
“Quando se está dentro de um relacionamento abusivo, muitas vezes não percebem. Como era o meu caso. Para mim, o “cara” abusivo era aquele que batia na mulher até deixar marca. Mas não, o abuso pode ter várias formas de ser demonstrado”.
Sofia* era adolescente quando engravidou do seu primeiro filho. Assim que descobriu a gravidez decidiu sair de casa e morar com o pai do bebê. “A relação com meus pais era conturbada e eu tinha conhecido um homem mais maravilhoso e incrível do mundo, pelo menos era o que ele adorava insinuar”.
Evangelina Castilho comenta que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, existem estudos que determinam que não existe um tipo de personalidade de vítimas de violência doméstica. “O agressor tem a culpa pelo abuso, e não a vítima”, afirma. Outro fator que é muito mal entendido pela sociedade é acreditar que a violência doméstica acontece apenas em famílias mais pobres. A desembargadora conta que a violência doméstica pode ocorrer em todas as classes sociais e económicas da sociedade, e de todos os grupos étnicos e religiosos. Não há evidência de que algum nível profissional, de classe social, ou de cultura seja imune à violência doméstica.
Vinda de uma família que já tinha indícios de relacionamento abusivo, Sofia não se considerava uma pessoa vulnerável. Ela conta que nunca tinha aberto mão de suas vontades em detrimento da vontade do outro, porém com esse relacionamento era diferente, ela achava que tinha encontrado o homem perfeito. “Nos dois primeiros meses, foi lindo. Eu estava longe do caos e machismo que imperavam na casa onde fui criada, para viver livremente com um cara que aparentemente entendia todos os meus problemas e me ouvia muito. Mas não durou nem quatro meses”.
O que para Sofia era um sonho começou a se transformar num pesadelo. O homem modelo o qual ela tinha se casado, foi se transformando em uma pessoa que sequer ela reconhecia. “Descobri e vi que ele, que tinha 26 anos na época, era ativo em bate papos de adolescentes. Depois, descobri que ele pedia para essas adolescentes, meninas de 14, 15 anos, para tirarem a roupa para ele pela webcam enquanto ele também se exibia. Me senti ferida, traída, senti nojo, quis sumir”.
Sofia se tornou uma pessoa mais desconfiada, estava sempre tentando descobrir o que seu parceiro estava fazendo e o abuso passou a prejudicar sua felicidade e seu bem estar. A situação piorou quando ela o viu seduzir uma criança de 13 anos e marcar um encontro com ela. Mesmo sabendo de tal fato Sofia não teve coragem de denunciá-lo e, ao pedir ajuda para amigos e familiares, eles falaram que ela estaria exagerando. “As mulheres as quais eu recorri na época pouco se importaram. Mas é claro que ele não podia ser [pedófilo]: hetero, branco, família de classe média alta, estudado, bom perante a sociedade. A família e os amigos dele diziam que eu estava exagerando. Os meus amigos ficavam revoltados, mas ele sempre dizia que eles não eram meus amigos de verdade”, conta.
Esse é um comportamento muito comum para aqueles que são próximos das vítimas de abuso. Muitas vezes por desinformação ou por uma questão cultural, as pessoas acabam por aconselhar as vítimas a perdoarem o agressor. “Assim, a família e a sociedade, em geral, aconselham a mulher a permanecer no relacionamento, a perdoar, a suportar, com a esperança de que haverá melhoras", afirma a desembargadora Evangelina Castilho.
Com o comportamento opressivo de seu parceiro, Sofia se anulou e se isolou ainda mais. Cada vez mais recuada e se sentindo impotente, os abusos aumentavam gradualmente. “Eu era a feia, chata, desinteressante, papo ruim, burra, incompetente, incapaz, gorda, quando emagrecia parecia um palito, meu peito era caído demais, meu nariz estragava meu rosto. Fazer sexo? Eu precisava praticamente implorar para que acontecesse”, conta.
Depois de anos sofrendo abusos psicológicos, a situação saiu do controle e Sofia foi agredida fisicamente pelo seu companheiro. “Ele me bateu uma vez que eu disse que nunca mais aceitaria esse tipo de coisa. Ninguém me ajudou”, recorda.
A pesquisa intitulada “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado” foi realizada em 25 estados brasileiros e incluiu entrevistas a 2.365 mulheres e 1.181 homens em 2010. O estudo aponta que 7 milhões e 200 mil mulheres com mais de 15 anos já sofreram agressões. Quanto aos homens, 8% admitem já ter agredido fisicamente uma mulher, 48% dizem ter um amigo ou conhecido que fizeram o mesmo e 25% têm parentes que agridem as companheiras.
Outra pesquisa divulgada pela Fundação Perseu Abramo, em parceria com o Sesc, mostra dados alarmantes sobre a violência de género. É apontado que a cada dois minutos no Brasil, cinco mulheres são agredidas violentamente. A situação era pior há dez anos, quando oito mulheres eram espancadas no mesmo intervalo de tempo.
O sofrimento que não tem fim
O ex-companheiro de Sofia acabou por sair de casa abandonando a criança e a esposa. E mesmo após anos separados os abusos continuam. “Ele e a família dele foram fundamentais para me desestabilizar mentalmente. Ele usava o fato de ter parentes advogados para me mostrar que ia ter a guarda da criança, o pai dele que me chamava de mentirosa quando eu questionava machucados e má higiene na criança quando ela voltava de lá. Sofri violência por ele e pela mãe dele, que marcaram festas de aniversário na escola escondido de mim”, conta.
É preciso combater
A desembargadora Evangelina Castilho aponta que é preciso criar uma rede de apoio às vítimas da violência, para que elas possam denunciar, buscar punição para o agressor, solução para o problema familiar e recomeço da sua própria vida.
Mesmo depois de tantas dificuldades, a luta é para que essa história não se repita em outras famílias. “O que eu desejo para todas as mulheres é que quebrem o ciclo de abuso. Que não tenham medo de sair dessa, que não tenham medo de colocar a boca no trombone. O mundo muda e é a partir de discussões, diálogo e insistência para um assunto se tornar pauta”, afirma Sofia.
*Os nomes foram modificados para proteger a identidade.
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