Os animais do coração

Reportagem | Bárbara Cadete

Situada no centro da serra da Goldra, a associação Coração100dono alberga vários animais rejeitados e maltratados pelos seus donos. Um lugar seguro que representa para muitos a sua segunda casa

O caminho é atribulado e a falta de sinalização não ajuda. Longe da confusão da cidade, avistam-se no meio do monte os primeiros cães à guarda da Coração100dono. Depois de alguns contratempos e muito calor, os latidos são sinal de que a viagem foi realizada com sucesso. Alguns desconfiam desta chegada repentina, outros abanam a cauda de felicidade, outros ainda saltam de alegria e entusiasmo, e os mais tímidos observam em silêncio.

A associação, que se situa na Goldra, em Loulé, abriga cerca de 195 animais, dos quais 165 são cães e 30 são gatos. Os voluntários encontram-se no local, sempre prontos a ajudar e a fazer tudo o que for necessário para cuidar dos amigos de quatro patas. E espaço não falta para correrem, brincarem, saltarem e serem felizes.

Fonte: Coração100dono
Marisa, fundadora da Coração100dono, que celebrou recentemente quatro anos, dedica a sua vida aos animais maltratados, abandonados e desprezados pela sociedade. Desde os mais velhos até aos cachorrinhos de tenra idade, todos são ali acarinhados. O amor desta associação pelos animais é visível. O  dia-a-dia de Marisa é todo ele preenchido pelos cuidados com os animais: “a minha rotina é basicamente a mesma todos os dias, e bem cansativa, não só fisicamente como emocionalmente pois todos os casos são desgastantes e tristes”,  revela. Das seis da manhã às dez da noite trata da alimentação, limpeza e demais necessidades dos inquilinos da quinta. Para além deste abrigo, ainda cuida dos animais que possui em casa, “são cerca de 40, entre cães e gatos, é praticamente uma extensão do refúgio”. O seu dia só acaba quando termina de tratar dos animais de rua, aos quais também não consegue ficar indiferente.


Voluntariado e voluntarismo

Como todas as associações, esta não tem quaisquer fins lucrativos. Cuidar de tantos animais é uma tarefa bastante complicada, pois é necessário assegurar a alimentação, pagar despesas em clínicas veterinárias e batalhar para que nunca lhes falte nada. Manter o equilíbrio é uma constante luta na vida de Marisa e de todos os outros voluntários. Para sobreviverem recorrem à “ajuda de pessoas que gostam dos animais e ainda a uma ajuda mensal por parte da Câmara Municipal de São Brás”, afirma a fundadora da Coração100dono. Com despesas por abater e com a constante escassez de dinheiro, para além das ajudas recorrentes costumam organizar eventos de solidariedade e recolha de bens, como alimentos, mantas e materiais, que vão ajudando a manter as condições do abrigo. Realizam ainda “cerca de duas a três vezes por ano jantares solidários, e, pontualmente participamos em eventos como feiras ou mercadinhos”, esclarece. Ainda assim, é com um sorriso nos lábios e boa disposição que todos os que contribuem para o funcionamento desta associação encaram os dias de trabalho e diversão. O espaço é grande e os animais para tratar são cada vez mais. Brincar, dar mimos e atenção, limpar e alimentá-los são tarefas que se vão multiplicando. Para quem estiver disposto a juntar-se à equipa, Marisa apresenta o principal requisito: “é muito simples, nós não fazemos exigências, só pedimos que gostem realmente deles e que os queiram ajudar”.
Pedro e Muriel são voluntários praticamente desde a abertura da associação, na qual desempenham todas as funções. As razões pelas quais decidiram fazer voluntariado são muitas, desde o amor pelos animais ao ambiente da associação, a compaixão, mas os que os motiva acima de tudo é “a vontade de ajudar os animais e de ajudar alguém a concretizar o seu sonho”, reforçam ambos.

O ambiente é bastante agradável e reina o espírito de entreajuda e amizade entre a equipa de voluntários Também os animais fazem parte desta grande família. Muriel, sobrinha de Marisa, explica que “a maior parte dos voluntários desta associação têm uma ligação familiar com a Marisa, e os que não tinham passaram a ter, são família de coração. Somos toda uma grande família a trabalhar em prol do bem-estar dos animais”.

As novas leis

Ao longo de vários anos, a luta pelos direitos dos animais tem sido constante. As mentalidades começaram a mudar e “as pessoas já não olham para os animais como coisas, já reconhecem que eles são seres vivos com sentimentos”, observa Pedro. A verdade, é que já são notórias as diferenças na legislação, com a aprovação de vários projetos relacionados com os direitos dos animais.

À luz da lei, quem maltratar um animal pode ser punido com uma pena de até um ano de prisão ou multado, enquanto quem cometer o crime de homicídio poderá ficar preso até dois anos. Uma das alterações está no facto de os tribunais poderem proibir quem maltrate ou mate animais de companhia de os adquirirem durante um período de até dez anos. Para Marisa, esta proposta poderá vir a marcar a diferença, porém “até que a lei se faça cumprir ainda falta um grande passo”.
Em Abril, a própria ministra da justiça Francisca Van Dunem defendeu, de acordo com o DN, que os animais deveriam deixar de ser considerados como “coisas” e passar a estar “entre a coisa e o ser humano”. Partidos e sociedade são cada vez mais unânimes no estatuto que querem atribuir aos animais de companhia.

Hoje em dia, ninguém fica indiferente a casos de maus tratos ou violência para com os animais. Decerto que muitos se lembram da história do cão Simba que foi morto a tiro por um vizinho dos seus donos. Mais recentemente, um jovem decidiu publicar um vídeo nas redes sociais no qual pendura o cachorro fora da janela e o agride. Estes casos chamaram a atenção das pessoas e foram divulgados pelo país inteiro. Para o voluntário Pedro, foi muito relevante a aprovação da lei e a divulgação destes casos extremos, no entanto, o que ainda falha é o facto de “não existirem patrulhas ou entidades que possam fazer cumprir as leis”. Da parte de quem acompanha frequentemente novos casos de abandono e violência, fica a esperança de que um dia “tal venha a ser criado, talvez num futuro muito próximo”.

Rafi antes e depois de ser recolhido da rua
Fonte: Coração100dono

De acordo com Jornal de Negócios, os partidos da esquerda e da direita aliaram-se recentemente para acabarem com o abate em canis e gatis. Propõe-se que os animais sejam esterilizados passando o abate a ser proibido, exceto em casos de doenças incuráveis em que o animal esteja em sofrimento. Esta nova lei será implementada em 2018 e ditará o futuro de milhares de vidas. Marisa manifesta-se feliz perante esta nova conquista, porém deixa a pergunta no ar “Antes de se aprovarem as leis tem de se arranjar condições que permitam que as mesmas sejam cumpridas. Não deveriam antes ter criado espaços para acolherem estes animais depois de esterilizados?”

Para que o abandono não seja tão frequente e para se controlar o nascimento de novos animais em abrigos e associações, a esterilização  é um aspeto tido como opção. Devido ao facto de os "refúgios estarem lotados, são muitos os animais abandonados e a viver nas ruas, [bem como] de refúgios sem famílias que os adote”, Marisa vê na esterilização a solução possível, “essencial para que este ciclo acabe”.

A associação Coração100dono tem quase duzentos animais para adoção e espera de cada adotante que “os trate como um membro da família, que os ame e lhes dê o que mais precisam, uma família”, explica a fundadora. Para Pedro, quem deseja adotar um animal deve fazê-lo com “consciência e de uma forma responsável”, pois os animais “não são peluches ou brinquedos que quando nos fartamos colocamos dentro de uma caixa ou vamos deitar ao lixo mais próximo. São seres vivos merecedores de respeito e compaixão.”

Histórias marcantes

A Lia é um dos casos de sucesso do refúgio
Fonte: Coração100dono
Os casos de abandono, maus tratos e violência são sempre chocantes para quem trabalha em refúgios e associações de acolhimento. Entre tantos, há alguns considerados marcantes e impossíveis de esquecer por parte dos voluntários e responsáveis. Para Marisa, há um que se destaca: “o Rafi foi um dos que me marcou bastante, ficou sem pata por ter ficado preso numa armadilha. Quando o recolhemos estava num estado de magreza extrema e cheio de larvas”. Para os voluntários, é complicado selecionar uma entre as muitas histórias a que já assistiram, todas especiais, por um mutivo ou por outro. O caso que mais marcou Pedro aconteceu recentemente. “Recordo-me recentemente do Blue, um cachorrinho bebé abandonado à porta da Marisa dentro de uma caixa de papelão pequeníssima e com uma garrafa de água. O Blue tinha centenas de carraças espalhadas por todo o corpo, dava dó só de olhar, e no entanto, com um pouco de atenção e amor, 24 horas depois estava lindo de sorriso aberto e super brincalhão.” A Muriel tocou "especialmente a história da Lia, que tinha sofrido de violência por parte do dono, chegou cá sem um olho e cheia de mazelas causadas pelas violentas pancadas que apanhava. Não confiava em ninguém. Quando chegou rosnava a todos os homens e tinha muito medo”. Felizmente, e com muita paciência, compreensão e amor, a Lia voltou a confiar nos seres humanos e “tornou-se uma meiguice”. Para Muriel “são casos destes que nos dão todos os dias esperança e vontade de continuar.”

Blue recentemente abandonado à porta da associação. Antes e depois de ser tratado
Fonte: Coração100dono


Como a Coração100dono, são milhares as associações distribuídas pelo país que socorrem animais, maioritariamente sem raça definida, ignorados pela sociedade. Estão praticamente lotadas, dependem de apoios pontuais, de famílias de acolhimento e da enorme dedicação dos voluntários, para quem a esperança numa mudança geral de comportamento é a última a morrer.


Comentários