A Revolta da Manhã de Páscoa| Irlanda, 100 anos depois

Um século depois do primeiro grande movimento para a liberdade da Irlanda, o Olhares Académicos aventura-se pelas ruas do país para descobrir o que mudou e a atitude dos irlandeses acerca deste assunto.
Carolina Araújo


Às seis horas da manhã já todos estão a pé na casa da família Curran. Tudo se prepara para o longo e movimentado dia que agora começa. Meia hora depois, o carro já segue, nas estradas ladeadas pelos muitos campos verdes característicos do país, em direcção à estação de comboios. Os filhos vão passar o dia a Dublin. Às sete em ponto, a marcha pesada dos carris começa a sentir-se. E a viagem de cinco horas começa. O dia é tipicamente cinzento, mas, de vez em quando, quando as nuvens permitem, raios de sol espreitam pelas suas ranhuras. Afixado numa das paredes do comboio, um panfleto dá conta da comemoração da Revolta da Páscoa, que aconteceu há cem anos. Cathal Curran, estudante de dezassete anos, não consegue esconder a importância que tal feito tem na sua vida e vai contando, com orgulho: “Os rebeldes lutaram com coragem pela nação e cultura que tanto adoravam’’, e fizeram a diferença na Irlanda que hoje conhecemos.

Rising de 1916: o início do fim do domínio inglês

Pode dizer-se que tudo remota a 1914, ao início da Primeira Guerra Mundial. A Irlanda, ainda parte do território inglês, não tinha governo próprio. “Queríamos a independência”, relata o jovem estudante, ao relembrar-se das suas aulas de história. Diz o ditado que “England’s difficulty is Ireland’s opportunity’’ (A dificuldade da Inglaterra é a oportunidade da Irlanda). A oportunidade surgiu no contexto do conflito mundial, quando uma grande quantidade de soldados ingleses estava instalada em França e na Bélgica. A revolta, levada a cabo por militantes e voluntários republicanos, começou a 24 de Abril, no início da Semana Santa. Na altura, muitos dos soldados ingleses destacados em solo irlandês estavam de férias em Banna Strand, no sul do país, perto de Tralee, onde assistiam, entretidos e sem suspeita do ataque, a corridas de cavalos. Dublin estava deserta, sem polícias ou militares para impedi-los. Os combates duraram seis dias, mas no fim o movimento revolucionário foi contido e os seus participantes foram julgados e executados. Apesar do desfecho, a semente da independência ficou plantada e, além disso, o caso chamou a atenção de todo o mundo, o que abriu caminho para a Guerra da Independência nos anos seguintes. Os participantes desta revolta são, para Cathal, “heróis da pátria. Assim serão para sempre recordados”.

Dublin: o coração da revolta

No fim das cinco horas, o comboio chega finalmente à cidade de Dublin. Movimentada, a capital da Irlanda acolhe imediatamente quem lá passa. O céu continua nublado e estão seis graus Celsius. Em jeito de guia, Cathal aponta para o metro da cidade, que liga todas as principais ruas. “O’Connell Street é a mais movimentada e uma das mais largas da Europa. Também teve uma grande importância no movimento de 1916’’, declara. Dez minutos depois, lá estamos. Ampla, com autocarros que circulam de um lado para o outro, é perpassada por várias ruas e rotundas. Os edifícios antigos, como o General Post Office (GPO), com a sua grande importância, não só arquitetónica, mas também histórica, são os protagonistas da paisagem.


A Rua O’Connell é uma das mais largas ruas da Europa. Ao fundo, com colunas, o  edifício do GPO é um dos pontos de referência da revolta de Páscoa



Na manhã de Páscoa de 1916, os rebeldes apoderaram-se do edifício que era na altura, e continua a ser, o maior posto de correios do país. Não só este edifício, mas também os mais importantes e centrais da cidade foram ocupados e transformados em quartéis para os líderes da revolta que, durante uma semana, se barricaram lá dentro, segundo as descrições no website oficial do GPO.

O Museu Nacional é a próxima passagem numa viagem pelos espaços, e momentos, da revolta irlandesa. É um edifício enorme, nomeado de Collin’s Barracks, a partir de outra das figuras importantes do Rising, Michael Collins, o primeiro comandante-chefe do exército Irlandês. Collins teve um papel relevante, não só na revolução, mas também na Guerra da Independência, de 1920 a 1921. No mesmo museu, a importância e o papel relevante da cidade de Dublin são cuidadosamente explicados.

 Militantes republicanos estiveram barricados no edifício agora intitulado O’Connel Barracks


Foi em Dublin que Padraig (Patrick) Pearse construiu uma escola onde se adotou a língua nacional e que, durante o movimento, serviu como base para o armazenamento de armas. Para além de ter sido um conceituado líder e poeta irlandês, Padraig foi também quem leu, em Dublin, a tão desejada Proclamação da Independência.

100 anos depois: efeméride de orgulho e patriotismo

A Irlanda é um dos países europeus mais patrióticos. Em cada esquina, encontra-se uma loja de lembranças. Variam entre postais, chocolates, camisas, bebidas, cachecóis, entre outros produtos que fazem as delícias dos turistas que por lá passam, ‘’principalmente os americanos, que adoram tudo isto’’, admite um dos funcionários de uma loja situada no coração do Sul de Dublin. 

Um dos muitos cartazes e alusões ao movimento de 1916 espalhados pela cidade de Dublin 


As músicas, que entoam como barulhos de fundo, mostram o quão patriotas os cidadãos são. Quando as músicas que passam pelas colunas não são tradicionalmente irlandesas, são, muito provavelmente, de algum músico conterrâneo, como por exemplo Hozier, intérprete de ‘’Take me to Church’’. O orgulho que os irlandeses sentem pelo seu povo é incontestável. 



Todos os anos, entre o fim de Março e início de Abril, para além dos panfletos sobre o Rising, as cores verdes, brancas e laranjas estão espalhas por todos os cantos. É impossível não reparar que foi há cem anos que se deu uma das primeiras e mais importantes rebeliões e tentativas de reaver a independência da Irlanda.

‘’Eu consigo imaginar-me a viver nesta altura’’, declara Cathal, com um brilho no olhar. “Queria ter ajudado o meu povo a conseguir algo tão grandioso como a independência’’. A memória deste acontecimento vai permanecendo através de gerações e gerações, já que os pais contam aos filhos, que acabam por contar aos seus próprios filhos, um dia mais tarde. “Nós não somos indiferentes em relação a isto. Estamos todos muito orgulhosos pelos feitos dos rebeldes’’. As aulas de história ajudaram na compreensão do que aconteceu com o país, a entender porque é que a maior parte das pessoas fala inglês e não a língua entoada pelos bisavós e tetra-avós. Mas é graças à família que Cathal fala hoje a língua tradicional, o gaelic. Os seus bisavós falavam, a avó fala, assim como a sua mãe. E agora ele e a irmã ficam encarregados de continuarem a tradição. Confessa até querer passar o seu testemunho linguístico quando tiver filhos, mas sabe que “a língua está a morrer aos poucos e que eles não farão grande uso dela’’.

Cerimónias em homenagem aos rebeldes

Por todo o país, várias celebrações homenageiam a memória daqueles que perderam as suas vidas na luta pela independência, ou que então ficaram feridos a fazerem-no. Do Norte ao Sul do país, de Dublin a Athenry e Kerry.

Em Dublin, segundo com o jornal online JOE.ie, há discurso de homenagem do Presidente a todas as vidas perdidas na luta contra os seus antigos opressores. A O’Connel Street recebe também uma marcha de militares. Os passeios ficam repletos, enquanto os militares marcham pela rua até à frente do GPO. O acontecimento mediático é transmitido pelos meios de comunicação, que levam as imagens das comemorações aos pontos mais remotos do país.



Roger Casement, outra figura importantíssima na história do país, também tem uma cerimónia a si dedicada, a Sul. Foi em Banna Strand, no Condado de Kerry, que Roger Casement foi assassinado por ter participado no Rising e por ter sido homossexual. Em 2016, um século mais tarde, os populares de Kerry recriam os seus últimos passos, recusando-se a esquecer esta figura que teve um papel fundamental na Irlanda de hoje, aquela que lhes é tão querida.

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