Miguel Balança
Alentejo a dois tempos
O transformado clima tropical alentejano impele as comemorações de rua e a tolerância estatal torna possível a quase todos cumpri-la. Mas nem todos apostam o mesmo na efeméride
Ourique com entrudo apressado
O regozijo com o despojar da carne não espera. A poucas horas do dia virar, a noite, chuvosa que está, ganha a “movida” que com a luz do dia esmorece. Do antigo quartel dos bombeiros, há anos convertido num moderno, mas desabitado, mercado municipal, vem o som do entrudo. Ao fundo, em toda a vila, ouve-se resquícios de inglês com “accent” ora britânico, ora americano, por entre um manancial de reportório musical brasileiro. O sotaque português emerge no revisitar dos anos oitenta. Ontem no Rosário, hoje em Ourique. O calendário festivo da zona, onde a fixação de população diminui de censo para censo, parece ser concertado entre todos, numa tentativa, não velada, de minorar eventuais rombos financeiros e alavancar ganhos. No último recenseamento em 2011, eram apontados à freguesia de Ourique 2874 habitantes, o número mais baixo de sempre. Para encher a maior sala de espetáculos do país seriam precisos quase sete vezes mais habitantes, para lotar o estádio da Luz, quase vinte e três vezes. Naquela noite, como na anterior, a organização, encargo dos finalistas da escola secundária da terra, e de alguns que, não o sendo, ali se incluem por amizade, cria um ambiente inusitado, não por demais concorrido. A entrada a um euro não motiva mais de cinquenta pagantes e o espaço vazio, entre danças, que as há, é claro. As luminárias natalícias, reaproveitadas, em conluio com a luz fria, natural do espaço, farão o resto. Ao princípio da noite já há quem entre comprando «bilhetes em barda», negociados com o porteiro: dois pelo preço de um. É a tentativa, discutida entre todos, de subtrair clientes aos dois bares em frente ainda abertos, e lotados.
Apesar da tolerância estatal permitir estender o deboche pelos dias gordos da semana seguinte, quase todos preferiram o fim-de-semana, e este sábado em particular, para se tornarem notívagos. Há quatro anos que a deficitária Câmara de Ourique não organiza desfile popular à terça, mantendo-se apenas, dentro de portas, o cada vez mais curto corso das escolas na sexta-feira anterior. Fora de portas, a pouco mais de dez quilómetros, mas com apoio camarário, ergue-se o tradicional baile de máscaras da Favela, este ano à segunda. Os adeptos dos festejos diurnos dividem-se entre Almodôvar, Sines e Loulé. À noite, ou em boa parte dela, a Moagem e o Central motivam a clientela que falta à festa de Carnaval dos «moços do ciclo», como se ouve, entre conversas cruzadas. A maior parte age como pendulo entre os três espaços e será difícil encontrar quem, ao fim na noite, não os tenha percorrido todos. No primeiro, ou no «café do Zé Pedro» reúne-se a mocidade, quase toda regada a Sagres, que ali se entende ser a melhor. Tenta-se adivinhar, quer em redor da mesa de bilhar, quer dos matrecos, como estará o ambiente uns metros abaixo. «Os moços fazem isto cá em Ourique, querem o quê?» - questiona Caixinha - «Tivesse feito em Garvão ou até em Santana, aqui se não fossem os pais e as mães aquilo estava vazio» – concluindo que- «a viagem acaba sempre por ser paga por eles». Quase sozinho, o funcionário público, de trinta e cinco anos, que esta noite sai sem a mulher ou a filha, diz: «Já no meu tempo era assim. As pessoas preferem estar aqui ou à do Artur [café Central], é mais acolhedor, percebes? Mas já lá vamos dar uma voltinha para ajudar». Ali não há disfarces, nem a casa se encontra particularmente decorada para cumprir a efeméride. No «café do Artur» o ambiente assemelha-se, mas ainda mais lotado e, ao contrário do anterior, maioritariamente, cheio com gente de uma geração acima. Apesar de tudo, a festa carnavalesca dos finalistas colhe muito mais junto destes e, com o fecho do espaço, às duas da madrugada, o fluxo de pessoas que se dirige à festa cresce. À porta, Lala, mãe de uma das finalistas, naquela noite mulher das cavernas, incentiva à entrada: «Entrem moços, a festa está boa!» Persuadidos, também pelo frio, acabam por entrar. Mr. Pi, naquela noite militar, faz soar os êxitos dos anos 80 e as maiores reações são por estes motivadas. «A maior parte do que aqui se vê é da Câmara» - comenta Tiago, trabalhador na área da aviação, regressado de fim-de-semana - «mas está bonito, no Rosário não se via disto. Aqui estão juntos, dá para ver que os pais estão metidos nisto». Às quatro da madrugada já se arrumam as mesas junto ao palco, às cinco, a porta fecha.
Rurality Show em Almodôvar
A calendarização do principal corso carnavalesco para terça-feira evidencia os intentos do promotor, o município, em equiparar as comemorações às de maior renome. A contratação da reconhecida apresentadora de televisão Teresa Guilherme como madrinha do corso concorre para o mesmo. Nunca antes tinham existido tantas inscrições, oitocentas ao todo, o que perfaz um número recorde de trinta e oito carros alegóricos e cinquenta e quatro grupos apeados. Em contrapartida, são anunciados aliciantes prémios de participação. Antes mesmo da arruada arrancar, ultimam-se pormenores entre os grupos de organizados, quase todos servidos com um veículo motorizado de apoio, muitos em cima de estruturas rebocadas por pequenos tratores. Um funcionário camarário faz o check in dos grupos que chegam e alinha-os. Existem grupos de finalistas, da secundária da terra e de povoações vizinhas, agrupamentos seniores, associações desportivas, uma instituição de reabilitação, um jardim-de-infância: a paridade parece assegurada.
Já ultrapassadas as 15h, hora marcada para o arranque do desfile, aos altifalantes colocados estrategicamente, a voz de um elemento da organização informa que um carro de alta cilindrada bloqueia o percurso do desfile. Aumenta o afluxo de pessoas. «Ah isto já é normal um ‘atrasozito’» - ouve-se entre os populares. Na frente do cortejo, o animador silencia a música e torna-se audível: «Então e a Teresinha? Assim não dá, não. O gerador não vai aguentar, não». A madrinha está atrasada e o público, pontual, mostra o seu desagrado, vaiando, a dada altura, a organização. A verdade é que o descontentamento ressoa há semanas: «Fala-se em oito mil euros de cachet, as pessoas estão revoltadas, não compreendem». Joana, emigrante regressada, natural de Almodôvar revela o sentimento que perpassava ainda a semanas dos festejos.
Quase uma hora depois do previsto, o desfile arranca. A representação de Amália, Sócrates à janela «numa gaiola A4», Alberto João Jardim e Cristiano Ronaldo em sprint na subida do Malhão, e sobretudo a figura de «King» Eusébio sobre o dourado cadeirão dominam as reações de quem assiste. Desfila ainda «A Quinta das Celebridades», sobre um atrelado, onde singularmente convivem pessoas e animais, a representação dos mais carismáticos concorrentes do reality show cuja apresentadora se encontra uns metros atrás. Conduz o grupo uma marafona da própria, que numa pausa, das muitas, do corso ouve mesmo «ser mais simpática que a verdadeira».
A “verdadeira” segue num carro alegórico com o dobro da altura dos restantes, ladeada de dois jovens do concelho. Acena, pousa para as objetivas, troca parcas palavras com os que ali estão para a ver, que ascendem aos milhares, e cada volta ao circuito motiva maior simpatia. Três voltadas depois, o Carnaval fecha.
Apesar da tolerância estatal permitir estender o deboche pelos dias gordos da semana seguinte, quase todos preferiram o fim-de-semana, e este sábado em particular, para se tornarem notívagos. Há quatro anos que a deficitária Câmara de Ourique não organiza desfile popular à terça, mantendo-se apenas, dentro de portas, o cada vez mais curto corso das escolas na sexta-feira anterior. Fora de portas, a pouco mais de dez quilómetros, mas com apoio camarário, ergue-se o tradicional baile de máscaras da Favela, este ano à segunda. Os adeptos dos festejos diurnos dividem-se entre Almodôvar, Sines e Loulé. À noite, ou em boa parte dela, a Moagem e o Central motivam a clientela que falta à festa de Carnaval dos «moços do ciclo», como se ouve, entre conversas cruzadas. A maior parte age como pendulo entre os três espaços e será difícil encontrar quem, ao fim na noite, não os tenha percorrido todos. No primeiro, ou no «café do Zé Pedro» reúne-se a mocidade, quase toda regada a Sagres, que ali se entende ser a melhor. Tenta-se adivinhar, quer em redor da mesa de bilhar, quer dos matrecos, como estará o ambiente uns metros abaixo. «Os moços fazem isto cá em Ourique, querem o quê?» - questiona Caixinha - «Tivesse feito em Garvão ou até em Santana, aqui se não fossem os pais e as mães aquilo estava vazio» – concluindo que- «a viagem acaba sempre por ser paga por eles». Quase sozinho, o funcionário público, de trinta e cinco anos, que esta noite sai sem a mulher ou a filha, diz: «Já no meu tempo era assim. As pessoas preferem estar aqui ou à do Artur [café Central], é mais acolhedor, percebes? Mas já lá vamos dar uma voltinha para ajudar». Ali não há disfarces, nem a casa se encontra particularmente decorada para cumprir a efeméride. No «café do Artur» o ambiente assemelha-se, mas ainda mais lotado e, ao contrário do anterior, maioritariamente, cheio com gente de uma geração acima. Apesar de tudo, a festa carnavalesca dos finalistas colhe muito mais junto destes e, com o fecho do espaço, às duas da madrugada, o fluxo de pessoas que se dirige à festa cresce. À porta, Lala, mãe de uma das finalistas, naquela noite mulher das cavernas, incentiva à entrada: «Entrem moços, a festa está boa!» Persuadidos, também pelo frio, acabam por entrar. Mr. Pi, naquela noite militar, faz soar os êxitos dos anos 80 e as maiores reações são por estes motivadas. «A maior parte do que aqui se vê é da Câmara» - comenta Tiago, trabalhador na área da aviação, regressado de fim-de-semana - «mas está bonito, no Rosário não se via disto. Aqui estão juntos, dá para ver que os pais estão metidos nisto». Às quatro da madrugada já se arrumam as mesas junto ao palco, às cinco, a porta fecha.
Rurality Show em Almodôvar
A calendarização do principal corso carnavalesco para terça-feira evidencia os intentos do promotor, o município, em equiparar as comemorações às de maior renome. A contratação da reconhecida apresentadora de televisão Teresa Guilherme como madrinha do corso concorre para o mesmo. Nunca antes tinham existido tantas inscrições, oitocentas ao todo, o que perfaz um número recorde de trinta e oito carros alegóricos e cinquenta e quatro grupos apeados. Em contrapartida, são anunciados aliciantes prémios de participação. Antes mesmo da arruada arrancar, ultimam-se pormenores entre os grupos de organizados, quase todos servidos com um veículo motorizado de apoio, muitos em cima de estruturas rebocadas por pequenos tratores. Um funcionário camarário faz o check in dos grupos que chegam e alinha-os. Existem grupos de finalistas, da secundária da terra e de povoações vizinhas, agrupamentos seniores, associações desportivas, uma instituição de reabilitação, um jardim-de-infância: a paridade parece assegurada.
Populares a aguardar a inicio da marcha.
Eusébio a cruzar a igreja local.
Quase uma hora depois do previsto, o desfile arranca. A representação de Amália, Sócrates à janela «numa gaiola A4», Alberto João Jardim e Cristiano Ronaldo em sprint na subida do Malhão, e sobretudo a figura de «King» Eusébio sobre o dourado cadeirão dominam as reações de quem assiste. Desfila ainda «A Quinta das Celebridades», sobre um atrelado, onde singularmente convivem pessoas e animais, a representação dos mais carismáticos concorrentes do reality show cuja apresentadora se encontra uns metros atrás. Conduz o grupo uma marafona da própria, que numa pausa, das muitas, do corso ouve mesmo «ser mais simpática que a verdadeira».
Teresa Guilherme vai acedendo aos pedidos dos populares.
A “verdadeira” segue num carro alegórico com o dobro da altura dos restantes, ladeada de dois jovens do concelho. Acena, pousa para as objetivas, troca parcas palavras com os que ali estão para a ver, que ascendem aos milhares, e cada volta ao circuito motiva maior simpatia. Três voltadas depois, o Carnaval fecha.
A derradeira volta do cortejo.
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