Os Sem-Amor

Ser sem-abrigo vai muito para além do que vemos e, numa época de crise social e económica, reúnem-se esforços para ajudar estas pessoas em “situação limite de vida”
Joana Teixeira| Reportagem

Em toda a Europa, o fenómeno dos sem-abrigo é reconhecido como um problema social grave que carece de resolução. Segundo dados da FEANTSA (European Federation of National Organisations working with the Homeless), o número dos sem-abrigo tem sofrido um aumento constante. Estima-se que dezoito milhões de europeus, o que corresponde a uma pessoa em vinte, estão impedidos de ter acesso a uma habitação condigna. Um sem-abrigo não possui residência fixa: passa os dias e as noites na rua, em prédios abandonados e sem quaisquer condições básicas, em estações de metro ou de comboio, ou mesmo em contentores.

A cidade de Faro ilustra esta situação de miséria social: Sandra Matinhos, de 41 anos, conta o quão gratificante e dolorosa tem sido a sua experiência junto dos sem-abrigo. No dia 1 de Dezembro de 2013, saiu à rua no intuito de “encontrar pessoas com necessidades” e a partir daí nasceu o projecto “Partilhas”. Segundo esta responsável, o projecto destina-se a “ajudar pessoas que estão em situação limite de vida” e baseia-se num acompanhamento diário em que se incluem refeições, higienização e roupas. Para além dos cuidados básicos, Sandra recorda que lhes faz companhia, conversando e tentando compreender a realidade das suas experiências de vida. Um dos momentos que a marcou desde o início do projecto foi levar um sem-abrigo a fazer o cartão de cidadão. Este sem-abrigo não tinha identificação pessoal e não tinha conhecimento do seu processo de reforma. Na opinião de Sandra, era de extrema importância “torná-lo visível aos olhos da sociedade”. Este projecto, a caminho de uma associação, conta com a doação de bens alimentares, roupas e dinheiro por parte de várias pessoas. Os tempos economicamente mais controversos levam, no ponto de vista de Sandra, a uma maior união. A segurança social não contribui com qualquer tipo de fundos, porém outras associações, como o C.A.S.A (Centro de Apoio aos Sem-Abrigo), têm colaborado nestes actos solidários. A experiência que está a viver tem sido “uma aprendizagem”, contudo “os trabalhos concretizados pelas entidades vocacionadas têm-se revelado insuficientes”, lamenta a voluntária. A resistência dos sem-abrigo em obedecer aos preceitos impostos pela sociedade tem sido, de facto, uma limitação ao trabalho realizado. Por exemplo, dois dos sem-abrigo que está a ajudar, esclarece Sandra Matinhos, “são pessoas que têm perturbações psiquiátricas grave, o que é um impedimento de aceitarem determinados apoios”. Os preconceitos da própria sociedade em permitir que estas pessoas se tornem visíveis são outra das preocupações que tem sofrido na pele, mas esclarece que estes obstáculos não a fazem desistir do seu grande objectivo: ajudar os outros.

Reviver emoções passadas

Rumo ao cemitério de Faro, paira solidão no ar. Alberto Santos, de 51 anos, já sentiu essa amargura diária na pele. Durante 12 anos, explica, levantava-se “sempre a pensar ir à porta de uma igreja pedir, ou a uma mercearia”. Conta que percorreu vários países: “andei por França, na apanha da batata, Holanda, nas estufas, Espanha, nas vindimas”. E que se tornou sem-abrigo devido ao falecimento dos seus padrinhos, que o apoiavam a todos os níveis. A forma como as pessoas o tratavam não foi uniforme. Confirma que “em 100 % das pessoas, 40 % tentam apoiar e ajudar”. Muitas vezes foi tratado “abaixo de cão” devido à desconfiança e relação que estabeleciam com a droga, mas garante que a sua única preocupação era sobreviver. Chegou a ouvir comentários juntamente com os seus companheiros de rua, como “deviam ser todos postos num barco e ir para o alto mar” ou “vocês não deviam estar aqui”. Durante este percurso, foram raras as amizades e laços que criou. Recorda com tristeza os dias em que o medo se apoderou de si, ao acordar junto de toxicodependentes que lhe podiam fazer mal. A incerteza descrevia o seu quotidiano, e muitas foram as noites de insónia. Passou os últimos três anos de sem-abrigo na baixa de Faro e graças à Santa Casa da Misericórdia, mais especificamente ao provedor Lino Paulo, conseguiu sair desta situação. “Um dia, eu estava a pedir na Igreja da Misericórdia, sentado no chão, e ele chamou-me. Foi-me apresentar às cozinheiras da Santa Casa, onde davam comida aos sem-abrigo, e a partir daí tive acesso diário sem pagar nada”, relata Alberto Santos. Este foi o primeiro passo para alcançar uma vida adequada. Actualmente, sente-se feliz e tem uma filha de 8 anos, a sua “princesa”. O passado foi a maior lição que teve, aprendendo a lidar com todo o tipo de gente e a sobreviver com o mínimo. O maior conselho que pode dar a um sem-abrigo é “ir em frente e lutar, porque de outra maneira não se consegue nada”. Confessa que “não foi nada fácil sobreviver”.

Uma opção de vida?

João Abreu está sentado num dos bancos perto do cemitério, sem esperança de dias melhores. Expõe a sua delicada situação. Dorme num saco-cama perto do Pingo Doce. Acorda do “verdadeiro pesadelo” com o nascer do sol. Não é apoiado pela família há cerca de um ano, porque começou a beber com o dinheiro que estava destinado aos seus bens primários. Antes de ser um sem-abrigo, tinha uma vida “regrada” e “perfeitamente normal”. É pai de um rapaz com 8 anos, contudo não o vê desde os 5 porque a mãe proibiu quaisquer contactos. Sente-se desconfortável no contacto com outras pessoas, porque nota que “existe muita marginalização”. Já o tentaram ajudar várias vezes mas recusou, porque não se imagina a viver doutra forma. Passa fome, mas garante que está habituado – “qualquer um se habitua a viver em condições de miséria como estas…”. Procurar um emprego era o seu principal objectivo, antes de ter uma recaída com o álcool. “Quem vive na rua tem de aguentar de qualquer forma e o meu refúgio é beber”. Sente falta de um “abraço sincero ou uma palavra reconfortante”, mas assume que a culpa de estar nesta situação é inteiramente da sua pessoa. Ver o filho e poder contar-lhe a sua história foi um dos desejos que pediu para este ano, mas tem consciência de que “o menino ainda é pequeno e não tem consciência da vida”. Tem a certeza de que se fosse agora, “não tinha ido por este caminho”. Deixou de se preocupar com a aparência porque o seu estado “não é viver, mas sim sobreviver”.

Uma lição inesquecível 

Continuando o percurso pela baixa de Faro, o encontro faz-se com Daniel Correia Santos, ex-sem-abrigo, divorciado e com 3 filhas, com 51 anos de idade. Viveu na rua durante 4 anos. Quando questionado sobre o que o levou a viver nas ruas, responde: “uma sociedade profissional mal calculada...um sócio que me roubou, burlou e fiquei sem nada. O que originou a minha queda mental e perda de força para enfrentar tamanha perda!”. A sua família foi protegida, pois Daniel afastou-se e escondeu-lhes toda essa situação, só dando conhecimento passados 4 anos, quando já estava de saída da rua. O seu único vício é o tabaco e, embora não tenha adquirido problemas de saúde pelo facto de viver nas ruas, correu grandes riscos de adquirir uma doença pois, segundo afirma, o acompanhamento médico na rua é inexistente e quando recorrem ao hospital os se-abrigo são tratados de maneira desigual. Acrescenta ainda que durante o tempo que viveu na rua, nunca teve qualquer apoio da segurança social, apenas o apoio de uma instituição, que lhe forneceu a alimentação: a instituição C.A.S.A. Foram várias as amizades que criou durante esse período, e que ainda hoje mantém. Sentiu muita discriminação por parte das pessoas, exclusão e humilhação. Daniel confessa que essa discriminação, exclusão e humilhação começam dentro das próprias instituições. Para melhorar, falta mudar as mentalidades de quem as gere e nelas trabalha, e acima de tudo vontade política. O motivo mais forte para sair da rua foi o seu desejo de ajudar a salvar algumas pessoas da mesma situação. E sempre acreditou que seria possível a sua reintegração na sociedade. No entanto, se cair foi fácil, sair de lá foi muito difícil, teve de haver preparação para a saída pois, caso contrário, sem essa mesma preparação, é fácil haver recaídas. “Há um estigma que nos acompanha, daí vem a necessidade de uma ajuda psicológica, no meu caso eu pedi ajuda médica, para melhorar a minha saúde mental. É muito importante para adquirir a estabilidade no regresso à sociedade”. Contudo, e no meio do sofrimento, este homem afirma que o facto de ter sido um sem-abrigo acrescentou muitas coisas boas à sua vida e fez dele um homem diferente. Os seus objectivos para o futuro são, acima de tudo, “ser feliz” e garante que o será sempre que ajudar os outros.

Ajudar sem limites

A principal associação que ajuda os sem-abrigo em Faro, há cerca de seis anos, é o C.A.S.A. Não tem fins lucrativos e o seu principal objectivo é apoiar os mais desfavorecidos. Baseia-se na “boa vontade” e existe a nível nacional. Os coordenadores, Isabel Cebola e Pedro Cebola, começaram por distribuir alimentos por vontade própria, em sítios específicos, juntamente com outros voluntários. “A comida dada aos sem-abrigo era confeccionada no restaurante do espaço Himalaias”, esclarece Liliana Teixeira, umas das representantes do C.A.S.A. Após o crescimento da associação, aproveitaram um armazém para disponibilizar alimentos aos sem-abrigo. Segundo Liliana Teixeira, actualmente quase cerca de mil agregados familiares são apoiados por esta associação, o que nos revela a gravidade deste problema social. Aliados aos hipermercados, a alimentação é a “maior preocupação”, contudo tentam apoiar as pessoas das mais variadas formas possíveis. Contam com as doações de várias entidades particulares, tanto de dinheiro, como de bens materiais, que depois são colocados na Loja Social. O projecto C.A.S.A solidária, que pretendem implementar actualmente, tem como objectivo criar dormitórios para os sem-abrigo e um refeitório, contudo não estão a conseguir angariar os fundos necessários. Liliana Teixeira recorda que, apesar dos esforços, “existem dificuldades no contacto e feedback com os sem-abrigo”. Maria Helena, voluntária do C.A.S.A há dois anos e meio, presta-se a dar o seu testemunho. Tem participado em vários eventos para ajudar os sem-abrigo, como a barraquinha na Semana Académica. Afirma que “não há nada que nos torne mais humanos do que ajudar o próximo”. Apesar da quantidade de voluntários que existem nesta associação, considera necessários mais reforços, porque “maior parte das pessoas não têm 100 % de disponibilidade”. E, por isso, não perde oportunidade de apelar à participação de todos na ajuda aos sem-abrigo, porque “é uma questão de solidariedade, bem-estar comum e consciência de um dever cívico”.
Ser sem-abrigo não é, na maior parte das vezes, uma escolha.

Uma ajuda a quem tanto precisa.

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