"Nos passos da penitência"

Reflexões de um pecador ao realizar o percurso que levou Jesus Cristo à sua morte
João Carmo| Crónica (em jeito de reportagem, ou vice versa)

Chego à Igreja de Santiago em Tavira por volta das 15 horas. Ao subir as escadas, que ali se encontram, deparo-me com duas perguntas, que entoam na minha mente suaves e delicadas: “Porque é que estou aqui?” e “O que é que a Páscoa significa para mim?”. Entro. O padre fala de amor e de sacrifício. Ao meu lado uma criança chora a pedir o colo à sua mãe. Do outro lado, uma senhora idosa a chorar por razões que desconheço. Talvez a pensar no colo da sua mãe. Tais são as comparações que se observam num local sagrado ao abrigo da divindade entre duas gerações que se cruzam e que nos fazem pensar. O padre termina a sua pequena homilia e dá início à procissão. Sai da Igreja atrás da cruz do Salvador e do coro rezando o Pai Nosso. Vou para o fim da fila pois não quero ser visto. Quero sentir-me sozinho. Estranha sensação quando se está ao pé de um mar de gente.
Descendo a viela, deparamo-nos com a primeira estação, estação essa em que Pilatos entregou Jesus à sua morte, apesar de inocente, por vontade do povo, porque o povo, segundo dizem, “é quem mais ordena”. O padre faz a oração e o povo presente ajoelha-se, dizendo: “Pela vossa Santa Cruz que unistes o mundo”. Tantos são os inocentes do nosso tempo que não têm a oportunidade de se defender e de viver. Tantas crianças que não têm culpa de nascerem que são exploradas, escravas da ganância dos adultos ou vítimas das suas guerras sem sentido. Após uma leitura do evangelho segundo São Mateus, o povo clama em uníssono: “Senhor, tende piedade de nós” e sai em retirada, em direção do local da segunda estação com o coro a cantar “Salvai os inocentes”.
O sol bate forte na minha cara enquanto caminho, a pensar nas minhas duas perguntas iniciais “Porque é que estou aqui?” e “O que é que a Páscoa significa para mim?”. As pessoas que observo à minha frente, devotas por eleição, jubilam com os cantares da autoria do padre David Sequeira quando chegam ao local. “Pela vossa Santa Cruz que unistes o mundo”, repetem. Estação de sofrimento que obriga Jesus a carregar a cruz. Olho para ela e penso na doença, no desemprego, no desprezo e na indiferença, que são as cruzes da atualidade “Senhor, tende piedade de nós”.
Na terceira estação, penso no ser humano como pecador no ponto de vista de cristão, ao tentarmos caminhar sempre firmes mas acabando por tropeçar nas pedras do egoísmo, da indiferença e do orgulho. “Senhor tende piedade de nós”.
Já na quarta estação, reflito sobre a pessoa que assumimos como mãe, fonte de carinho e de paixão, abrigo no sofrer, que se sente e vive triste quando os seus filhos estão doentes ou sofrem injustiças. “Senhor, tende piedade de nós”.
Continuo o percurso, agora na ponte do rio Gilão. Como é belo observar a paisagem da cidade no seu esplendor com a luz do sol cada vez mais forte. Cidade que foi minha, mas agora não passo de um fantasma do passado pisando as suas calçadas. Curiosamente, a senhora idosa da Igreja continua a meu lado, no seu pranto. Continuo sem saber a razão do seu choro. Suzete é o seu nome. Pergunto-lhe pouco antes de chegarmos à quinta estação. Felizes aqueles que ajudam o amigo. A amizade é algo poderoso que atravessa fronteiras e chega a todo o lado, sem ela sentir-nos-íamos perdidos nas sombras de algo que não existe. Foi essa a lição que se aprendeu naquele instante. “Senhor, tende piedade de nós”. Segue-se a sexta, pedindo a Deus verdade, compaixão e amizade para todos nós.
A sétima estação, situada num local de encanto ao pé do Palácio da Galeria, faz-me pensar naqueles que sofrem da droga, do álcool e da miséria, que não são ajudados porque ninguém lhes tem misericórdia. A misericórdia que um dia lhes foi pedida por Jesus Cristo. “Senhor, tende piedade de nós”.
Abafado pelo calor do sol que emite um tom amarelo-alaranjado, guio-me pela fé e continuo o meu percurso, com cada vez mais gente chegando de todo o lado da cidade. Jovens entre os dez e os catorze anos sobrepõem-se aos adultos, porque de facto esta é uma catequese. Uma catequese de amor.
Na oitava estação, penso no papel da mulher nos nossos dias. Outrora escrava do homem, possui hoje a liberdade de pensar e de agir. É vista como uma igual, e não como um animal que só serve para a procriação. Embora as conquistas, batalhas ainda estão para se travar porque a mulher ainda hoje sofre pelo simples facto de não ser homem. “Senhor tende piedade de nós”.
O coro continua cantando, desta vez “Meu Deus, Meu Deus porque me abandonaste?”. A multidão reza o Pai Nosso e o Credo uma vez mais, porque não é de mais repetir. Encontramo-nos agora num jardim de flores e roseiras delicadas, cujas pétalas rodeiam abelhas, funcionárias da natureza que ajudam a renascer a beleza do que é belo. “Nona estação”, diz o sacerdote. A ingratidão mata o que é bom, é a gota de veneno num prato de água límpida, que não ajuda e que destrói. Tantos são os ingratos neste mundo que não merecem ter o que têm. E a culpa é nossa por os ter ajudado. “Senhor, tende piedade de nós”.
Continuo a andar com a multidão pelo percurso marcado e, ao pé do castelo, ao lado da Igreja de Santa Maria, é explicada a décima estação. Felizes os pobres que são pobres mas que não o são em espírito, pois apesar de serem pobres não julgam as pessoas pelas suas roupas ou pela etnia, fator esse que alimenta a inveja de muitos. “Senhor tende piedade de nós”.
Na décima primeira estação é explicada a importância do perdão e como este influencia a nossa vida. Tantos são aqueles que não perdoam e que vivem na alegria dos seus lares pensando um dia entrar no Reino dos Céus. Coitados, pois estão perdidos! “Senhor, tende piedade de nós”.
Estou quase no fim do percurso. O sol bate tão forte e eu sem água sinto-me fraco. Um…Dois…Três…Quatro…Cinco… são os passos que dou lentamente a caminho da antepenúltima estação. Nesta estação, roga-se para que se salve aqueles cuja esperança se perdeu na hora da morte do Senhor. E que lhes confie o seu amor incondicional e misericordioso.
“Décima terceira estação”, diz o sacerdote. “Ajuda-nos a ser verdadeiras testemunhas para que quem não crê no teu amor veja na nossa vida um sinal do teu amor.” O povo clama: “Senhor, tende piedade de nós”.
A caminho da última paragem decido perguntar à dona Suzete afinal o porquê do seu choro. Responde-me: “filho, choro porque reconheço-me como pecadora e porque vivi em pecado muitos anos. É na vida de Cristo que encontro consolo e na sua ressurreição a salvação para todos os meus males”. Faz-se luz na minha cabeça ensolarada pelo sol. Durante a caminhada de uma hora e meia, é no fim que percebo que a resposta para as minhas perguntas estava nas minhas reflexões e na pessoa que me acompanhou desde o início. Tal como as pessoas que me envolviam, eu sou um pecador e ao fazer o percurso sagrado (via sacra) vejo em Cristo tudo o que me é bom na vida e os males que como cristão devo eliminar. A ressurreição do Senhor acontece em todos nós, pois todos os anos fazemos com que o mal morra e o bem ressuscite para uma vida nova. Deve ser feito sempre e não só por esta altura, altura esta de Páscoa que antes de Cristo existia, mas que agora existe com um significado completamente diferente. Entro na Igreja onde se realiza a última estação, a de Santiago, onde tudo começou, e agradeço à senhora o seu depoimento. Feliz, escuto a oração e digo no final: “Senhor, tende piedade de nós”.

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